Em 2018, as dúzias de milhons de siareiros de Kim Kardashian, umha das figuras mundiais da tele-realidade, lérom que a sua figura deixava para sempre os ‘selfies’. A notícia foi chocante para as massas, desde que esta estrela norteamericana publicara um livro com fotos de si mesma de mais de 400 páginas, precisamente intitulado ‘Selfish’ (‘Egoísta’), e reconheceu que nalgumha das suas jeiras vacacionais – umha combinaçom de lazer e auto-promoçom- chegara a fotografar-se a si mesma 1500 vezes por dia. Pouco depois, anunciara no seu programa ‘As Kardashian’ que tivera que pôr-se umha pulseira ortopédica para curar a lesom que lhe produzira contorsionar tam constantemente a moneca nas suas ánsias de auto-retrato. ‘Isto vai proteger as suas maos sem que tenha que perder um momento de acçom em redes’, dixera a sua mae, aliviada, às cámaras de televisom.

O fastio provocado polo excesso de riqueza, as excentricidades e as depressons dos economicamente afortunados, som abondo conhecidos na cultura popular, e nesse sentido nada novo na história introduzem as imagens esperpênticas desta família californiana. Mas a novidade do nosso tempo reside em que tais comportamentos som objecto de atençom de multitudes, e ao cabo viram grande modelo a imitar. Se botarmos umha rápida vista de olhos ao plebiscito diário das redes sociais, comprovaremos que Kim Kardashian tem quase 71 milhons de seguidores em twitter;comparando-o com algumha das figuras mundiais da contestaçom tolerada, da crítica social que nom se situa nas margens do sistema, os dados som eloquentes: Greta Thunberg, a adolescente que protagoniza a luita contra o aquecimento global, conseguiu 5 milhons aderentes; Jeremy Corbin, o dirigente trabalhista inglês, 2,4 milhons; e Slavoj Zizek, un marxista súper-ventas nas classes médias de Occidente, 79000.

Assim é o nosso século, se considerarmos o mundo virtual um bom indicativo de tendências sociais de fundo . Quando todas as classes acometem o seu particular processo de dó para dar o adeus a umha civilizaçom que esboroa, o ciberespaço acolhe respostas contraditórias: algumhas de ar severo, como as simplificaçons e fanatismos políticos de todo signo, as teses conspirativas, as terápias e as formas de curaçom do eu. Mas muitas outras banais e despreocupadas, como se todo o que se avizinha nom tivesse demasiado a ver com nós, e restasse muito, muito espaço, para esculcarmos os profissionais da auto-promoçom e tentar imitá-los com umha chuva de imagens de nós próprios.

Já em 2007, o psicólogo social norteamericano J. Twenge dera a lume o exitoso livro ‘Generation Me. Living in the Age of Entitlement’. Este investigador da Universidade de Sam Diego analisou as mudanças de comportamento entre geraçons no laboratório do capitalismo avançado, para concluir que nos enfrentamos a umha autêntica ‘epidemia de narcisismo’. Estatisticamente, segundo Twenge, os traços de personalidade narcisista avançaram tam rápido como os índices de obesidade desde 1980, e fixeram-no ao alento da cultura da celebridade promovida pola rede, junto com umha criança permisiva que se baseia em fomentar a ideia, entre adolescentes e jovens, de que som especiais e tenhem direito a consegui-lo todo. A promoçom de si mesmo -onde se inclui a promoçom impúdica da própria imagem- começaria a ter toda a lógica quando os chamados valores extrínsecos substituem os valores intrínsecos: o dinheiro valeria mais que a pertença à comunidade, a imagem mais que o sentido de filiaçom, e a fama mais do que a auto-aceitaçom.

A palavra ‘narcisismo’ pode levar a equívocos: desde os tempos da psicoanálise, associa-se com ‘um excesso de amor dirigido cara um mesmo’. Mas na sua utilizaçom mediática, e nos estudos sobre o egocentrismo à alça, pesquisadores precisam que o fenómeno que as redes multiplicam é mais bem o chamado ‘narcisismo dos pequenos’ ou ‘narcisismo vulnerável’. A precisom é importante. O narciso de hoje nom se quere muito, senom que se quer mais bem pouco, provavelmente porque os entornos sociais onde as pessoas nos sentíamos apreciadas e valorizadas fôrom aos poucos descomponhendo-se, e procuramos calor noutro lugar. A partir dum estudo dirigido por Phil Reed popularizou-se o termo ‘raiva narcisista’, que estabelece um correlato entre a falta de atençom popular e um certo paroxismo dedicado a subir posts com conteúdo individual e endurecer e tensionar o discurso; bem que nos pese reconhecê-lo, este comportamento é transversal às ideologias, e no caso das mensagens com inspiraçom de esquerdas, os discursos que tratam de culpabilizar e envergonhar as pessoas politicamente passivas proliferam quando mais sozinhos e impotentes nos sentimos.

Os movimentos populares tenhem dedicado milhares de páginas a estudar os efeitos dissuassórios para a luita da polícia política, os tribunais de excepçom ou as mentiras mediáticas, mas muito pouco – quase nada- a deter-se nos efeitos corrosivos que esta inflaçom do eu tem causado nos nossos projectos, contribuindo para o naufrágio de tantas iniciativas necessárias e inspiradoras. As sociedades comunitaristas, das que a galega foi mais um exemplo até há bem pouco, punham um cuidado especial em fomentar a modéstia, pois sabiam que qualquer exagero do sentido da auto-importáncia punha em causa delicados equilíbrios afectivos, sociais e económicos. Na exaltaçom popular da modéstia existe muita sabedoria oculta: é frequente crermo-nos melhor do que realmente somos, e por isso o seu exercício é umha forma de auto-correcçom que nos reconcilia com umha ideia mais ajustada de nós mesmos; mas além de sábia, a modéstia é útil, porque a fachenda incomoda ao interlocutor, e nenhuma empresa humana pode subsistir por muito tempo na permantente comparaçom de méritos entre os seus membros. Com muita razom, o mundo clássico incluiu a modéstia entre as virtudes, entendendo a virtude nom apenas na acepçom de ‘dom’, senom na acepçom transformadora de ‘qualidade própria para produzir certos e determinados resultados’.

Antonio Machado, por boca de Juan de Mairena, deixara como advertência aos grandes fachendosos que ‘por muito que um homem valha, nunca terá valor mais alto que o de ser homem’. E ‘homem’, como universal utilizado pola linguagem patriarcal, remite-nos ao muito radical ‘ser humano’, que à sua vez vem de ‘humus’, terra, da que procedemos e à que nunca demoramos demasiado tempo em retornar. A palavra dá-nos umha exacta dimensom do que somos. Fala do nosso tempo escasso e das nossas capacidades limitadas -nom divinas- para idear e transformar. Aliás, para o arredismo, a palavra ‘terra’ é também umha sinécdoque muito intensa que inclui a natureza e os devanceiros, as árvores e as pedras, o céu e os rios, as luitadoras e o povo anónimo, o passado e o futuro, a tradiçom e a utopia. Com o pensamento posto no humus e na consciência de sê-lo -isso é etimologicamente a humildade- a nossa tentaçom de inflar-nos esmorece, para assim erguermos colectividades poderosas.