(Corpus textual e performativo de Angélica Lidell dentro do repertório da poesia mística feminina)
Conferência lida no III Seminário Permanente Performa, o 3 de outubro de 2022, Faculdade de Filologia de Santiago de Compostela
INTRODUÇOM
“A oraçom que nom sabe chegar aos beiços. A éxtase irrealizável. Aspirante perpetua às tentaçons de Deus”. Acodo à cita textual de Angélica em Umha costela sobre a mesa com o mesmo desejo e suspicácia de quem acode à cita amorosa com o Outro.
Angélica pertence a umha estirpe.
Angélica pertence a um todo que é o mesmo que dizer nada.
Ela sabe isto. Sabe que a divindade é nada e que a nada é toda divindade, e que nessa ausência de alteridade as duas cousas se negam, e negando-se sucede um estouro que é um desbordamento.
E isso é o que a fai da sua criaçom um ato inequivocamente espiritual. Inefável.
Quando me convidárom a este seminário foi proposto o título: “Por que me interessa Angélica Liddell?” A mim nom me interessa Angélica. Nom me interessa a sua superfície. Nom me interessa o seu discurso. Nom me interessa a sua estética. Os seus velos. Interessa-me o que a ela lhe interessa, que nom tem tanto que ver coa razom ou os sentidos, coa sua visom da vida, que dista muito da minha, como com todo o referente à nom-vida: a transcendência, a espiritualidade. Nom me interessa tanto a sua arte como de onde abrolha a necessidade de fazê-la.
Segundo a autora, a audiência muitas vezes confunde (realmente podemos falar de confusom na hermenéutica, na crítica, na arte?) as suas palavras, tachando-as de blasfémia. Vem só o monstruoso no monstruoso, o terrível no terrível, putridez, desencanto, violência, perversom, por vezes como meros recursos ornamentais. Sublimar isso, porém, é o que parece pretender ela.
A audiência muitas vezes localiza no seu discurso um niilismo vivificador e umha crueza purificadora que suscitam admiraçom. Umha catarse agónica, crueldade libertina e liberadora. Mas que sucede quando essa violência, purgativa por transgredir as leis e as convençons teatrais e, deste jeito, situar-se fora das margens, começa a fazer-se canónica, fazer-se convençom? Vomitaria o público se Artaud for nojentamente famoso em todo o mundo? Se a violência ritual, no canto de oferecer um interstício, for amossada nom só impunemente, senom massivamente? Nom sucede agora no mundo globalizado? Seguiria a ser um sacrifício poético? Seguiria a ser catártica? Seguiria a ser interessante?
Entom que vejo eu quando leio as palavras de Angélica? Todo o anterior? Nom. Eu vejo (e no ato de ver sempre há umha escolha) luz.
Vejo dramatúrgias da luz, tal e como Victoria Cirlot descreve as visons de Hildegard von Bingen. O contato co sagrado. A via que nos achega mais ao sagrado nom é a violência, senom Amor. O movimento, que é o desejo, é a tendência do universo segundo Heráclito. [DANÇA] E nesse devir do desejo sempre há colisom. Por tanto, a violência vem depois de Amor. Primeiro o caos, logo o Amor, logo a violência. Porque o conceito de divindade sempre foi caótico. Angélica escreve na Carta ao senhor Sagawa, na Trilogia do Infinito, “O amor é ese preceito divino que tem dado lugar a toda a violência extraordinária que nos funda”.
Angélica também diz numha conferência da Biennale de Teatro no 2016, encol da sua brutalidade estética e linguística “a mim nom me interessa a blasfémia, interessa-me o Amor. Nom se pode falar de Deus e do Amor se nom vam unidos”. Ao longo desta conversa também fala dum aço por devolver-lhe ao teatro a categoria do sagrado, a sua espiritualidade. Reconstituir o caráter performativo do encontro cénico, volver ao ritual.
Sublimar a experiência da audiência meiante um exercício de violência poética.
Ela diz que os ritos só podem suceder num perímetro cénico. Se foder é um rito, poderia-se considerar a cama um perímetro cénico. Se rezar é um rito, poderia-se considerar que um templo é um espaço de intimidade subvertida. Púlpito, pálpito: (VIS)
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Óscar Cornago analisa a tendência do teatro a partires dos anos 60 às resonáncias espirituais, ao rito sagrado, e menciona a Angélica : “um tipo de acçom de forte tom performativo, onde se desenvolve a dimensom cerimonial. Esta constrói-se a travês do tom ritual que adotam muitas das acçons que vam ter lugar na cena”. Fala desta tendência como ecos de epifanias, ou hierofanias. Remetendo-me ao jogo lingüístico que a poeta galega Yolanda Castaño fai com essa palavra, erofania, e lendo todo o repertório literário de Angélica (os seus ensaios, a sua visom da espiritualidade, a poética da paixom e do erotismo…), todo convida a fazer um estudo comparativo coa tradiçom da poesia mística, e enquadrar a sua figura dentro dumha genealogia de autoras lidas mulheres que compartem traços comuns.
Estes traços, que enumerarei mais adiante, estam presentes nos trabalhos das autoras que se escolhérom para esta conferência: Safo, Matilde de Magdeburgo, Hildegard von Bingen, Santa Teresa de Ávila, Marguerite Porete, Beatriz de Nazaret, Rabia Al Adawiyya, Jualiana de Norwich, Hadewijch de Amberes, Emily Dickinson, Simone Weil e Agnes Blannbeckin.
Algumhas pertencen à tradiçom mística, outras nom, mas bem poderiam fazê-lo.
Lembremos que o contato extasiado coa divindade de Safo, se bem nom é o Deus cristiám, é Eros. È essa paixom, que a leva à náusea, co canto 120: “De novo Eros, que afrouxa os membros, estremece-me, doceamargo felino invencível”
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A palavra mística vem da marca verbal grega μύω, que significa “eu cubro” ou “eu início”. Deriva deste a forma mistykos, o que é segredo ou velado ou o que está pechado. O significado verbo μύω tem variado ao longo do tempo, e pasou tambem a significar “fazer alguém consciente de algo” ou “experienciar por vez primeira”.
Assi podemos entender que, ao igual que a intuiçom sabe o que a razom explica, a etimologia da mística é umha sorte de conocência sem entendimento, de iluminar-se sem atravessar as formas, de enxergar o que esta oculto, de aceder ao que está pechado, de ser consciente de algo que vai além da consciência: umha experiência auto-iniciática e auto-poética.
Estas derivas inacesíveis fôrom as que se atrevêrom a transitar muitas mulheres ao longo dos séculos, momentos de éxtase nos que se uniam co absoluto (ou coa divindade, dependendo das distintas religions, católica, budista, judia…). Esta henose, que no neoplatonismo se emprega para referer-se à uniom co Um (e que tem paralelismos co Tao oriental), propiciou que muitas mulheres, ora analfabetas ora letradas, se interessasem na palavra escrita como arquivo das suas experiências.
Estas, ao serem tam inabarcáveis, e contrariando ao dualismo cartesiano corpo-espírito, valerom-se da linguage. Nom há nada mais carnal que a linguagem, mais ancorada ao material, pois mália atravessar a matéria a travês da abstraçom, germola-se e apoia-se nela. Ao ser a linguagem insuficiente para translucir ditas experiências místicas, como estabelece Denis de Rougemont, estas mulheres nom podiam senom remitir-se a comparaçons físicas (algumhas estudosas consideram que nom som comparaçons, se nom justificaçons para falar do amor humano). Assi, o encontro coa divindade passava a expressar-se em termos matéricos. E este encontro passava a ser do mais parecido a umha cita amorosa. Ao encontro sexual. A éxtase religiosa converteu-se em sinónimo do orgasmo.
Como molhar-se coas águas desde arriba [o bautismo] era um rito iniciático, abrolhar águas cara abaixo [squirt] era o mesmo que desvelar-se, iniciar-se no oculto.
“Ao sair da igreja, tropeço cos escalons, empurrada por umha energia de convulsom extenuante, febril.” (Angélica Lidell). Angélica diz nos Os Desejos em Amherst “Alcancei a altura suficiente para ter baixos pensamentos”. Marta Elina Marchi abre o estudo sobre Matilde de Branderbugo titulado A luz que flue da Divindade coa cita do livro IV de Gabriel:
“Quanto mais profundamente caio, mais docemente bebo”
SOIDADE
Iniciativa Sexual Feminina, um coletivo feminista e libertário de dança contemporánea, deu umha conferência no Centro de Arte 2 de Maio justo antes do início da pandemia, titulada Cada cual con su grito y dios en el de todas. Comparando a figura de Santa Teresa de Ávila, Madame Bovary, o nazi Gottfried Benn e Angélica, sublinhavam como o conceito corpo pode abranguer desde a umha bailarina e um cadáver. Como é umha abstracçom líquida e esvaradia, e como convive esta coa palavra. Cito textualmente: “O corpo é umha tragédia grega, é o destino. Vivimos nele e nom podemos fugir.”
O corpo, ao igual que o logos, é um cárcere.
Como diz Jean Luc Nancy no décimo indício sobre o corpo:
“O corpo é também umha prisom para a alma. Ali purga umha pena cuja natureça nom é doada de discernir, mas que fica mui grave. Por isso o corpo é tam pesado e tam penoso para a alma. Necessita digerir, durmir, excretar, suar, lixar-se, lastimar-se, cair enfermo.”
Angélica fala deste peso: “Expiro como as mulas expiram baixo o peso ilimitado dos seus amos. Para mim Deus. Para os outros as religions. O meu velo é a eternidade.”
A escatologia, o léxico que remite ao sujo, à enfermidade, aos membros…
No ensaio Ora et Labora de Marcelo Cox estuda-se, segundo os parámetros de Hannah Arendt, como as concepçons do íntimo e do público fôrom flutuando, relacionando-as coa arquitetura dos mosteiros religiosos em Europa. “A partires do século XI, os mosteiros plantejárom a posibilidade de atopar um ponto meio entre formas solitárias em excesso (o eremita) e formas integradas em excesso (o cenóbio); umha posibilidade de conciliar a vida comum e a vida individual, o espaço coletivo e o espaço privado”. Como dizia Roland Barthes, “umha soidade interrompida de maneira regulada”.
Desta soidade relativa ou regulada também fala a poeta sufi Rabia al Adawiyya, do século VIII: “Irmans, a minha paz esta na minha soidade, /O Meu Amado atopa-se comigo a soas nela, sempre”.
A soidade podia ser umha obriga (como a orde das carmelitas, os cistercienses) ou umha escolha. Desta fala Angélica em Os Desejos em Amherst “O meu desejo consiste em vestir-me de branco e fechar-me na casa- imitando esa eleiçom”.
Esta escolha, que faz referência à que tomou Emily Dickinson no século XIX ao fechar-se no seu cuarto indefinidamente (poeta que Angélica admira e na que se baseia o livro) era enarborada também polas beguinas no século XII. As beguinas eram mulheres que se organizavam e viviam horizontalmente na contemplaçom e na vida ativa, ajudando a gente enferma e pobre, e que nom faziam votos perpetuos de castidade ou de clausura. Se lhes condenou de hereges e muitas fôrom condenadas à fogueira, como Marguerite Porete. Esta mística definiu este “soidade acompanhada” como o longecerca. Tambem Julia Kristeva fala de Teresa de Ávila e da sua relaçom com o Outro, que se atopa dentro e fora dela a um tempo. Almudena Otero, filósofa galega que investiga sobre o erotismo e as experiências místicas em O Ollo e a fonte diz “Deus está fora e a um tempo dentro de mim. Ou melhor: só existe quando tem penetrado em mim”. Às beguinas mais radicais se lhes chamavam as celadas ou as muradas, posto que se fechabam em celas ou entre muros, e só tinham contato co exterior por meio da palavra e a escoita. Maria Milagros Rivera Carreta fai um estudo mui intuitivo sobre a inspiraçom que as beguinas puderom ter em Emily Dickinson.
Pola parte da soidade regrada, temos à mística cisterciense Beatriz de Nazaret, poeta belga do século XIII que diz no seu tratado titulado Os Sete Modos de Amor “A terra é entom grande exílio. /Umha dura prisom, cruel tormento”. E tambem à mística espanhola, Teresa de Ávila, já do seculo XVI, co seu famoso poema, do que leo um extracto:
“Esta divina prisom/ Do amor com que eu vivo/ Fijo a Deus o meu cativo/ E livre o meu coraçom;/E causa em mim tal paixom/ Ver a Deus o meu prisioneiro/ Que morro porque nom morro// Ai, que longa é esta vida/ que duros estes desterros/ esta cárcere e estes ferros/ no que a alma esta metida.”
Emily Dickinson diz num poema:
“Poderia estar mais soa sem a minha soidade/ tam afeita estou ao meu destino/ tal vez a outra paz/ poderia interromper a escuridade/ e encher o pequeno quarto/ exiguo de mais na sua medida/ para conter o sacramento dele.”
O nojo do corpo, o autorejeitamento que esta presente em Angélica também o atopamos em Matilde de Brandemburgo, que descreve o seu corpo como “cárcere lamacento” ou “cam morto”.
Angélica, nas suas entrevistas, quando se refere à sua vida pessoal, admite que nom tem família nem parelha. Mas umha vez, a autora passa a ser a sua própria figura literária, epítome de autoficçom.
“Livra-me dos desejos. Nesta pensom açufrada.” (…) “Cuspo no leito podre, a soidade é perfeita.”
Namentres Emily Dickinson comunga: “ Desposada- sem o esvaecemento. Que Deus nos envia às Mulheres.”
Sob a posta em cena e o processo de criaçom de Esta breve tragédia da carne, Angélica fala da cor branca e da reclusom da poeta americana. Varios actores levam também postos trajes brancos de apicultor, imitando aos trajes dos sufis ou monges, ao veo da noiva.
Numha cena, a mesma Angélica introduz-se na vagina um dildo dourado, encarnaçom metálica desse deus Cristiám que se afinca no coraçom sexual das místicas, esse deus grego que mexa por riba da mulher e procria.
Isto nos leva a outro elemento importante: a transverberaçom.
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TRANSVERBERAÇOM
“Gabrielinho cravo d´ouro/ da-me um alfiler de prata/ para quitar umha espinha/ do coraçom que me mata”.
Mesmo no folklore galego há referências às transfixons áureas e espinhentas de Amor. Umha das experiências místicas é a da transverberaçom, do latim transverberatio (traspassar), um fenómeno polo qual se receve umha ferida do Amor de Deus. Lembremos a cita de Almudena Otero: “Deus só existe quando penetra em mim”. Esta ferida de amor que nos traspassa ou que nos fai traspassar à outra beira, o contato co absoluto, um recevemento explossionante e penetraçom do divino, muitas vezes se tem comparado coa penetraçom fálica. Mas também como umha marca, um emblema, un estigma. Também se associa com práticas masoquistas, nas que a dor e o prazer se confundem, elemento habitual na escrita e performance de Angélica. Ela diz: “Podo viver sem ver a deus. Podo cantar à pistola que me dispara”.
A ferida eterna que é a existência, segundo Nietzsche, converte-se em experiência performativa: as místicas fam do total da sua vida umha ferida. Ou como diz Rivera Carreta, converterom a ferida de cristo na costela, de horizontal a vertical. Umha ferida que é umha linha recta, ou um olho, a mirada interior (o entendemento).
Um dos termos que se empregam no pentecostalismo é o de Ferida no espírito, que descreve a prostraçom das que experimentam umha eufória religiosa e caim ao cham. No sufismo, este éxtase chama-se Wajad, inducido pola Dhikr (meditaçom que significa “recordo de Deus”), que se consegue meiante o ritual Sama (as voltas concéntricas, as ondas na auga).
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Simone Weil foi umha filósofa e mística francesa de princípios do s. XX. Ativista política, viajou até Espanha e luitou na guerra civil na coluna Durruti. Ainda vindo de família acomodada, quijo trabalhar na fábrica de Renault para viver como umha obreira: «Alí recevim a marca do escravo».
As místicas recevem a marca do seu Amado, Amante e Amo, a frecha de Eros, fazendo-se escravas da transcendência, recevendo-o com temor e tremores, como em Japom se devia recever ao emperador. Hildegard diz desse recevemento: “inflamou todo o meu coraçom e o meu peito”, Beatriz de Nazaret diz que “sinte que llhe atravessa o coraçom um lume”, Hadewijch fala do “furor do amor que me feriu desbordando-me”, Matilda de Branderburgo diz “as frechas da divindade traspasa-os cumha luz inaprensível”. Santa Teresa descreve umha das suas visons assi:
“Via-lhe nas mans um dardo de ouro longo, e à fin do ferro parecia-me que tinha un pouco de lume. Este parecia-me meter polo coraçom algumhas vezes, e que me chegava às entranhas. Ao saca-lo, parecia-me que levava consigo e me deixava abrasada no amor grande de Deus”.
Em Via Lucis e nos poemários de Angélica podem-se ver múltiples referências à transverberaçom :
“Doi-me o coraçom, a víscera, umha dor física, e tremem-me os braços”
“ Mui pronto infetou-se, algúm dia serám cicatrizes sobre o meu charco de sangue de pé/ como umha santa os garfos cairom ao cham desde a minha vagina”
“Açouta-me com látegos de chumbo. Até o último suspiro”
O abrassamento de Teresa de Ávila é outro claro exemplo do emprego de analogias sexuais, a sensaçom final depois do orgasmo, normalmente comparada coa luz e o lume. Hildegard falava dele: “Oh! Espelho de santiadade, oh fogo de amor, /oh doce sabor nas almas”
Safo, no canto 38 da ediçom em galego por Edicións Positivas, também só dizia, flutuando em aposiopese, como um mantra ou umha oraçom: “Abrasas-me” ο π Τ α ι ς α μ μ ε
Este rapto, este delírio provocado polo lume também se atopa n´Os Desejos em Amherst: “Como explicar a natureça que oculto? Há un salvajismo ferido (…) há cousas dentro do perigo de viver cum litro de gasolina no corpo/ arder qualquer dia(…)”.
Ou em Que farei eu com esta espada: “ Nom podo seguir aturando esta combustom eterna”.
Ou na Trilogia do infinito: “Quanto tempo tivem trabalhar neste misto, Senhor (…)”.
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Ao longo da tradiçom mística também se registárom os chamados estigmas (do grego στίγμα: marca), marcas ou sinais no corpo que remetem à Paixom de Cristo, feridas que aparecem nos pulsos ou nos pés causadas polos cravos; na cabeça, causadas polas espinhas; nas costas, causadas polos látegos. Maria de Oignes, beguina do século XII, foi o primeiro caso registado deste fenómeno espiritual ou psicosomático.
É conhecida a prática da autolesom, da que Angélica bebe de Marina Abramovic, artista coa que comparte o interesse pola religiom. Nalgumha obra, Angélica lesiona-se as pernas e molha pam no seu própio sangue, para logo come-lo. Disto fala em O sacrifício como ato poético:
“O sacrifício implica a máxima vulnerabilidade corporal, que é a máxima vulnerabilidade espiritual. (…) Na carne, como instrumento libertador, reside o risco e a provocaçom, a barricada (…). Alguns artistas lesionan e exponhem violentamente o seu corpo ante o público para recuperar precissamente essa identidade e independência, que é força espiritual.”
O sacrifício, a imolaçom, é umha transgresom. Como diz Roland Barthes nos Fragmentos dum discurso amoroso: O sujeito amoroso esboça umha conduta ascética de autocastigo.
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TRANGRESOM
Da relaçom entre erotismo e transgresom muito tem falado Georges Bataille. O sacrifício é umha transgresom deliberada, um cámbio repentino do ser. Por isso a plétora sexual esta intimamente relacionada coa morte (petite mort em francês).
Este rebassamento da carne é situar-se por enriba da lei moral e da autarquia da razom, e está presente em toda a obra de Angélica, mas também vejamos o que diz Marguerite Poret, em O espelho das almas simples: “Verdadeiro, para Santa Igreja a Pequena, diz Amor; essa Igreja que esta governada pola Razom; mas nom para a Santa Igreja a Grande, diz Divina Amor, que esta governada por nosoutras”. Diz Angélica “Impossível amar se nom é delito”.
Angélica também recorre à controversia da imaginaria do incesto. De igual maneira, as místicas tambem viam a Deus como Pai, Irmao e Amante (toda figura masculina estava englobada no seu nome).
Angélica também se serve dumha linguage crua, literal, dura, direta. Às veces, as místicas atravessavam a metáfora e recurriam a este tipo de linguage também, como fijo Blackbenn, umha beguina austríaca do s XII cujas revelaçons fôrom compiladas polo seu confessor :
“Chorando e com compaixom, começou a pensar no prepúcio de Cristo, em onde estaria localizado [tras da resurreiçom]. E no momento sentiu coa maior doçura na sua língua um pequeno anaco de pele igual que a pele dum ovo, que tragou. Tras tragá-lo, novamente sentiu a pequena pele na sua língua com doçura como antes, e outra vez a tragou”.
Disto também fala Angélica: “Mesturava o seme codiciado coa verdura de mamá/ na boca sagrada/- como se Deus copulara cos meus sentidos, agora/ deves apontar e mejar sobre os meus lábios”.
Este aço polo catarse do rito, o pathos, que é umha violência interior do ser, vê-se no devir performativo da sua obra, herdança dos mistérios dionisíacos e as bacanais. Finalmente todo è ritual: a oraçom, o sexo, o sacrifício, a performance, oportunidades (que dizia Bataille) de recuperar a continuidade como “seres descontínuos” que somos.
Este desejo de continuidade, de uniom absoluta co eterno, traduz-se no desejo de morte das místicas e Angélica.
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ENFERMIDADE E MORTE
“A minha angúria custa-lhe mui cara aos homens. Pagam porque sabem que lhes amo com loucura/ E que estaria disposta a morrer por cada um deles. Sabem que/ Sempre estou a piques de morrer”
Diz a personagem da puta na obra Dorosa. Desta ansia de morrer também fala Marguerite Porete, descrevendo o caminho da alma até converter-se em nada, aniquilada em deus. Pois a morte e o sexo som desposuimento. Desfazer-se como figuras de ar ou areia.
Como diz Angélica em Solitária “E eu abandonei a razom quando as minhas vísceras começárom a desfazer-se como a areia”. Ou Rabia al Adawiyya:
“Nom achei nada em todos os mundos que existem
Que poida comparar-se co seu amor,
Esse Amor que dispersa as areias do meu deserto(…)”
A disoluçom do eu em pos dumha uniom, umha perda progressiva. Um desvelar(se) -abrir o oculto, retirar os veios-. Desprega-se como na dança sufi, pois por cada volta que dam os corpos desprendem-se dumha Cousa, até chegar ao cimo. Umha ascensom. Igual que o orgasmo. Como diz Angélica em Via Lucis, em latim caminho até a luz: “O desejo consiste em estar namorado da morte”.
O desposuimento também se traduz na vida quotiá: Rabia Al Adaasd viveu como escrava e nom tinha nengumha posesom, ascética, como os anacoretas do deserto. Simone Weil quijo viver como umha obreira numha fábrica sendo professora para poder experimentar o modo de vida da classe obreira.
Também as místicas desejam, se nom poden conseguir a morte, o sofremento para achegar-se a Deus. Juliana de Norwich fala no Livro das revelaçons como lhe pedia a Deus que lhe desse umha enfermidade para entrar mais em contato com ele.
A enfermidade é um tema mui presente nas biografias e criaçons destas mulheres:
Um poema de Angélica diz:
“A causa dumha enfermidade inomeável/tivera-me gostado tanto ser mui amada/ por muitos homes e muitas mulheres/ amada/hoje mui enferma/colgam-me agulhas dos dedos/ nocelhos perforados/ úlceras e mocos para entreter as mascotas/ a sopa na xiringa/ mejados sublimes/ – matarei-me quando estiver curada/mas antes os salmos traspassaram a minha vagina-/ e deixa-me acavar este arroz”
Em A Casa da Força aparece “Amo a minha enfermidade, nom errades no diagnóstico”.
Sem ir mas longe, Teresa de Ávila, Simone Weil, Juliana de Norwich… tiverom revelaçons e visons no momento de cairem enfermas.
E se nom era por via da enfermidade, entom era pola via da coita:
“Ti repetías ‘Angélica, Angélica’, e depois gemías em voz baixa, ‘a coita Angélica’, nom ‘a coitada Angélica’ senom ‘a coita Angélica’, coma se houbese um tipo de coita celestial que estivese classificada baixo o meu nome” Angélica
“Que me sucede/ que já nom estou em mim? Sorbeu a sustáncia da minha mente./ Mas a sua natureça asegura-me/ que as coitas de amor som um tesouro” Hadewijch de Amberes
“O desejo atormenta-a até dar mágoa/ O que sofre é paixom e martírio/sem comparaçom nem medida” Beatriz de Nazaret
[…]
AUSÊNCIA DO AMADO/PERSONIFICAÇOM DE DEUS/DIVINIFICAÇOM DO AMANTE
(Cito):
- “Amar é adorar a distáncia coa que se ama” Simone Weil
- “Pobre idiotas os que agardam a resposta de deus. O que eu amo é o seu silêncio” Angélica Liddell
- “O amor é um indício da nossa miséria. Deus nom pode senom amar-se a si mesmo. Nós nom podemos senom amar algo distinto de nós” Simone Weil.
- “ A fe é como amar alguém que esta ai fora, nas tebras, e nom aparece por muito que se lhe chame” Ingmar Bergman citado por Angélica na Carta de Marta a Tomas
- “O único impulso verdadeiro até a fe é entregar-se por completo a alguem que te ignora. Dar-se a um mesmo incesantemente até o ponto de que o baleiro do outro se volva necessário para seguir dando” Angelica Liddell
Desde a lírica trobadoresca até os tempos da morte de Deus há umha ausência do Outro, do Amado, de Deus.
Angélica diz que nom crê em Deus mas por isso crê, igual que no Amante.
Noli me tangere
[…]
[…]
DELÍRIO
Escolhim rematar esta conferência coa singeleça dum froito. Como Angélica titula o seu último poemário Vejo umha vara de amendoeira, vejo umha ola que ferve.
E como Juliana de Norwich, que fala assi do mundo:
“Nisto que me amossou algo pequeno, nom maior que umha abelá, na palma da minha mao, segundo me pareceu, era redondo como unha bolinha. Mirei-no co olho do meu entendemento e pensei: “que pode ser?”. Respondeu-se-me, de maneira geral “É todo o que tem sido criado”. Fiquei abraiada de que puidesse durar, pois umha cousa tam insignificante, pensava eu, podia desvanecer-se num intre. E se me respondeu no meu entendemento: “Permanece e permanecerá sempre, porque Deus o ama; deste jeito, todo tem o seu ser a travês do amor(…)”.