A crónica de viagem atingiu, como subgénero literário, um grande sucesso popular no século XIX quando, inspirada no romantismo, rachou com as pretensons científicas e positivistas das grandes expediçons coloniais que partiam ao encontro do outro, para converté-lo apenas em objeto de estudo por parte dum exército de especialistas académicos que, ajudados dumha retórica impenetrável para os nom iniciados, certificavam a superioridade cultural e racial de Ocidente. Com o romantismo individualiza-se a viagem multiplicando-se as motivaçons do deslocamento e as possibilidades narrativas do mesmo, do mesmo modo que a procura do outro, do estranho, do estrangeiro, converte-se também numha procura de sim próprio, anunciando assim umha nova experiência com a alteridade cuja complexidade continua a ser hoje central no debate filosófico, cultural e político. No entanto, e a pesar da profunda transformaçom que o género tem experimentado sob a influência romântica, a literatura de viagens nom acaba, no século XIX, de independizar-se da sua matriz histórica cujos vestígios estám mais próximos das Crónicas de Índias dos impérios coloniais que de Heródoto e a viagem como motivo recorrente na literatura da antiguidade clássica. Assim o considera Edward Said no seu Orientalismo onde, sem negar o valor estético e a importância das mudanças que operam na forma de construir o conceito de Oriente, figuras de primeiro ordem do romantismo que sucumbiram a febre aventureira e viageira do século, como Nerval ou Flaubert, fórom também úteis para a projeçom dumha imagem estereotipada e essencialista do que os académicos oitocentistas dérom em chamar Oriente.

Seja como for, a literatura de viagens na altura, consolidou-se como um instrumento ótimo para a representaçom de imagens coletivas cuja interpretaçom definia tanto o objeto de observaçom como o sujeito, convertendo o texto num campo de batalha onde a identidade se rebelava como um exercício de poder; desta perspetiva compreende-se o interesse e promoçom dum género literário que foi privilegiado na altura onde surgem as grandes narrativas nacionais.

Um país às margens

Nom é por acaso que o nosso país apenas deixou umha pegada residual num género que se estendia por todo o lado; os nossos viageiros nom eram precisamente os vultos ilustrados das classes abastadas, curiosos por observar um mundo que ao mesmo tempo que se ampliava nas mentes, se constrangia no tempo e no espaço graças ao enorme desenvolvimento dos meios de transporte. Por outro lado, a Galiza também nom supunha um destino demasiado atrativo para umha elite que desfrutava das facilidades de deslocamento recém descobertas: “Os caminhos da Galiza, apesar da proteçom de Santiago –substituto do romano Hermes–, do mesmo modo que a Via Láctea no céu tenhem muito pouco que agradecer aos cuidados humanos”, deixaria escrito o viageiro británico Richard Ford em 1845, um dos poucos que se aventuraram para deixar a suas impressons escritas do nosso país.

Deste modo, a literatura de viagens oitocentista em Portugal, que se desenvolve nos mesmos parâmetros impostos polo romantismo em toda Europa, recusa também a Galiza como destino para os escritores viageiros apesar do intenso intercâmbio populacional fronteiriço, assim como as idas e vindas dumha massa migratória galega que procura novas oportunidades de vida nas tarefas estacionais relacionadas com o mundo agrário no norte de Portugal, ou nas atividades urbanas da agitada Lisboa.

Os escritores viageiros como Ricardo Pereira Guimarães ou Francisco Maria Bordalo sentirám a chamada irresistível de Oriente, que com as capitais culturais europeias se convertem nos destinos prediletos do romântico português, sem esquecer aqueles que, impelidos pola efervescência do debate iberista em Portugal, se embarquem numha viagem peninsular para deixar registo das terras e gentes que a habitam. Assim: Viagens em Terra Alheia de Teixeira de Vasconcelos ou Em Espanha de Júlio César Machado recreiam com todo detalhe a vida e o território peninsular sem por isso mencionar o nosso país. Os contados escritores e viageiros portugueses que deixárom registo escrito do seu passo pola Galiza, como Ramalho Ortigão, figerom-no como apontamento marginal do seu percurso:

Os milagres de Santiago acabaram há muito, porque é da natureza de todas as imperfeitas fortunas humanas que as devoções, assim como os medicamentos, só curam enquanto são moda […] é por esse motivo que nós vemos aparecer neste século as grandes festas da civilização, as exposições universais, os congressos científicos e literários”. Através do exemplo de Compostela, Ramalho Ortigão, pom de manifesto as mudanças operadas na mentalidade do viageiro moderno concorrentes com as grandes transformaçons sociais do século XIX; a peregrinagem aos lugares santos transitou para o deslocamento aos novos templos sagrados do conhecimento e a ciência; mas nem só, Ramalho alude também à decadência política galega e a sua condiçom marginal como resultado da política de assimilaçom castelhana.

Ainda haverá quem, como Francisco Silveira da Mota, dedique um livro inteiro para relatar a sua viagem pola nossa terra, o escritor e político português recolhe as suas experiências em “Viagem na Galiza” de 1883, mas nom sem deixar de exprimir o singular da sua eleiçom: “Visitem outros as capitais florescentes dos grandes impérios, as ruínas das famosas cidades, que o decurso dos tempos devastou; eu desta vez só posso peregrinar aquém dos Pirenéus, em pobres, humildes terras que os viajantes desdenham”

Um escritor marginal

Este estatuto de marginalidade da nossa naçom, pode explicar, em parte, o facto de “Cadernos de Viagem. Galiza 1905” do escritor alentejano Fialho de Almeida ficar inédito até a professora Lourdes Carita ter recuperado as notas originais da passagem de Fialho pola Galiza, que fórom editadas pola primeira vez na editora galega Laiovento em 1996. Também nom teria ajudado a sua divulgaçom o carácter indómito do autor cuja obra ficaria relegada às margens do sistema literário português. Fialho transitou todos os géneros literários deixando umha obra dispersa, fragmentária onde, além dos contos compilados em três volumes destacam as crónicas jornalísticas da vida lisboeta, a crítica literária e artística, o manifesto e o panfleto, recolhidos na sua obra mais emblemática “Os Gatos”. Fialho atreveu-se, no seu tempo, a disparar contra todo incluindo-se ele mesmo, ganhando-se merecidamente a antipatia dos seus coetâneos. Fialho colocou o lumpem como protagonista das suas obras, escolheu a taberna, o bordel ou a prisom em lugar dos salons de chá e a tertúlia de ateneu como paisagem de fundo dos seus contos, abraçou umha estética decadentista e alucinada que priorizava o impacto percetual à construçom narrativa dos factos, exprimiu mediante a passagem e o trânsito um sujeito fragmentado antecipando a narrativa vanguardista do século XX, exiliando-se assim do tempo que lhe tocou viver, onde o caminho para a glória dum escritor devia desembocar inevitavelmente no grande romance que ele nunca escreveu. Nom é por acaso que o seu nome será reivindicado posteriormente por Fenando Pessoa, ou que Almada Negreiros tenha confessado a influência de Fialho no seu “Manifesto anti-Dantas”. Por seu lado, Raul Brandão, figura chave no trânsito do modernismo para a literatura contemporânea em Portugal, será o primeiro em reivindicar o escritor alentejano assumindo a ausência dum romance canónico como parte intrínseca do seu particular estilo, e nom como a prova dumha incapacidade:

Transtornou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de tudo. As descrições perderam a proporção, as figuras a realidade, transformadas em figuras de dor ou de grotesco; a própria cidade ressurgiu a uma tinta lívida de antemanhã, com a casaria a escorrer vício e aspectos tétricos… É isto sim, mas isto criou-o ele de pobreza e desespero, criou-o de gritos que nunca ninguém lhe ouviu. – E maior! Ficou maior! A sua obra só tem outra que se lhe compare, a de Camilo. Exigem-lhe um livro harmónico. Porque é que toda a gente reclama dos outros aquilo de que eles são incapazes? A obra de Fialho não podia ser senão esta, aos arrancos e enorme.”

Mas, nem com tam ilustres porta-vozes, a obra de Fialho de Almeida conseguiu vencer o esquecimento, ele próprio recusou o reconhecimento dos colegas literários que abraçárom o realismo naturalista com que a geraçom de 70 procurava revolucionar a cultura portuguesa, de facto, a sua hostilidade para com Eça de Queirós tornou-se mais célebre que a sua inclassificável obra, “valem como caricaturas ou tipos sociais, mas não como almas”, di Fialho a respeito das personagens dos romances de Queirós. Oposto à teoria positivista do realismo que desde Balzac entende a literatura como umha ferramenta de progresso social, Fialho foi desprezado tanto polos progressistas da geraçom de 70, como polos reacionários assustados polas furibundas diatribes anticlericais do escritor alentejano. Aliás, a crítica literária e artística nom tinha apenas percurso como género literário em Portugal enquanto Fialho arremetia com todo nas suas crónicas jornalísticas, também cá foi um pioneiro, numha arte reticente mesmo para vultos como Camilo Castelo Branco: “Dei-me pouco a este género de escritos, temeroso das dificuldades. […] A crítica, em Portugal, é quase impraticável por duas causas: a primeira é que somos poucos a escrever, e nos apertamos cordialmente a mão todos os dias; a segunda é que, com este teor de vida, nenhum escritor se faria um nome que o compensasse dos dissabores e da pouquidade dos lucros”

Dissabores e pouquidade dos lucros ilustram a carreira de Fialho, autor incompreendido por antecipar-se ao seu tempo e marginal por própria vocaçom, “o público é por toda a parte, lama, lixo, escória desprezível”, deixou escrito nalgum dos seus inúmeros arrebatos jornalísticos.

Um escritor marginal no país às margens.

Fialho chega à Galiza em 1905 no ocaso da sua carreira, vencido e devorado pola sua própria personagem, encerrado em si próprio numha “desilusão sinistra de tudo e de todos”, a sua raiva tornou-se ressentimento, e o ressentimento desencanto. E no entanto, nada se percebe disto lendo os “Cadernos de viagem”, onde Fialho regista, em notas tiradas no momento, a impressom que lhe causou o país, como se do encontro nascesse um reconhecimento mútuo na marginalidade, umha cumplicidade terapêutica que mostra um Fialho mais descontraído e sereno, imerso no prazer da viagem e a descoberta, “nom quero viajar em figurão; quero ir a toda a parte, quero ver as coisas à vontade, quero que façamos assim uma viagem em operários, entende?” teria-lhe dito Fialho a Xavier Vieira amigo e confidente do autor. A ediçom de “Cadernos de viagem” recolhe os apontamentos que serviriam hipoteticamente de base para a elaboraçom dum livro que nom chegou nunca a existir, som notas escritas no instante, sem processar, à bruta, mas por isto também, coerentes com a lógica fragmentária da sua obra. O imediato das suas percepçons em relaçom à paisagem, à arquitetura, ou aos costumes, tirados da sequência cronológica da sua viagem, ilustra bem umha obra construída como umha compilação de passagens que recreiam a sensaçom do movimento. Entusiasta do impressionismo, Fialho percorre o país com olhada de pintor, como um paisagista na procura dumha determinada qualidade sensível da luz apenas percetível nesse instante, nesse lugar. Mas se na sua obra canónica a luz servia para justificar as sombras, aqui aparece para inundar as cousas revelando as suas formas através dos reflexos:

Esta descida à Veiga do Minho é um dos encantos idílicos de Lugo; por ela a paisagem reabilita-se, e cria-se amor ao rio, que para mim português não é mais um rio, mas um símbolo da Galiza mãe, mandando ainda agora as seivas da sua alma fecunda e forte, à nossa extenuada terra portuguesa. Por longa extensão, suponho, esta serena e maravilhosa toalha de água vai assim, pelos vales da província de Lugo, caindo em torrentes, soando nos açudes, fecundando-a; do alto da costa da estrada que vai a Santiago, antes de tornar à cidade, sigo com a vista esse enorme e límpido cristal que sussurra e parece ter consciência do seu papel benéfico de rio, e tem a mansidão contemplativa do galego, e vai no labor tenaz que é a sua vida rural neste país”.

Mas o bucolismo que enche muitos trechos da viagem, que identificam a Galiza como um país eminentemente rural logo deixa passo a umha narraçom frenética que descreve o desenvolvimento urbano de Vigo despregando-se admiravelmente à vista do autor:

Muda o preconceito: A mor parte das construções ricas são de indianos. É o dinheiro da América que vai fazer de Vigo uma grande cidade, de elegância e luxo, e merece-o pela sua soberba situação . Quando se pensa no desenvolvimento de Lisboa e Porto, no dinheiro gasto, também de indianos, e no que se podia ter feito com outros arquitectos, outra Câmara e outra gente! Continuamos a ser a vergonha da Europa. Fazíamos, há 20 anos, troça da Galiza. Agora o verdadeiro Porriño somos nós!”

Casas velhas de Ourense (5º caderno)

Embora podamos achar este entusiasmo de Fialho em cada página dos seus cadernos, também cabem nas suas anotaçons a denúncia da pobreza e miséria que se estende por todo o país, cujos efeitos mais imediatos percebem-se no abandono da terra, e no êxodo maciço às Américas. E mesmo assim, o estilo grotesco e decadente que caracterizou a obra fialhana, converte-se aqui em fermosos fragmentos vestidos com a poética da nostalgia, ou em passagens descritivas que eludem valoraçons morais ou deterministas que ligam o povo galego com a miséria material e espiritual:

A estrada medonha, imunda, poeirenta, muros sobre rocha, com tufos de erva, uma poeirada insuportável. Ranchos de crianças meio nuas, foçando, rolando-se ranhosas, sujas, fazendo bichas intermináveis –e nos interiores das casas, santos, camas desfeitas, corredores negros abrindo nas traseiras do quintal, pobres cortinas de chita, pobres oficinas, onde os porcos se misturam com os artífices– galinhas, gatos lúgubres, mulheres sentadas no chão fazendo misteres, catando-se, coçando os pés, tomando fresco –e logo no meio de rumas de fato, de caixas, de cestos, de coisas que nunca foram arrumadas, criaturas cor de tijolo que comem em melgas, com colheres de pau, guisados fétidos de azeite– baiucas de tascas com o balcão em meio muro, separando a loja do freguês, padarias mostrando quatro pães de roda de carro por um escaparate de três palmos, sujo aponto de não deixar entrar a luz– e dentro dessas baiucas às vezes, caras deliciosas de maçá e cabelos castanhos. Às vezes esses casebres são duma velhice trágica, com as escadinholas gastas a que se sobe da rua até portas estreitas, duas janeluscas microscópicas com vidros em quadrado, e uma chaminé de pedra e cal, recozida, sinistra, a cair, à beira do telhado”.

O contraste entre o rural e o urbano, entre os tipos humanos que os habitam, entre as diferentes culturas agrárias, entre a pobreza e a abundância, entre o culto e o mundano, é umha constante neste “Cadernos de Viagem”, e mostram finalmente um país dumha diversidade paisagística e cultural surpreendentes, reabilitando umha imagem digna para um país maltratado polas narrativas que, de um olhar alheio, recorrem à mistificaçom e ao arquétipo para explicar o que somos e quem somos. A singularidade de “Cadernos de viagem” nasce do reconhecimento em Fialho de Almeida dumha identidade comum entre os dous povos confrontada com a descoberta dum mundo tam diferente ao lugar de origem do escritor alentejano, nom surpreende portanto, que o escritor maldito que chegou à Galiza “desiludido de todo e de todos” , nom hesite em declarar a viva voz o seu amor pola nossa terra:

Todo o país espraiado agora em campos de cultura, vinha, milhos, casas brancas profusas, roseiras caindo, cheias de rosas de armar, dos quinchosos, sobre a estrada, caminhos e córregos que partem da estrada perdendo-se sob latadas e para trás os picos das serras de granito: e à esquerda a ria e os montes da ria e de roda a verdura e o rir das casuchas, e pinhais e cerejeiras e carvalhas; e os montes de formas cónicas, cheios de pedras nos longes, e os carros galegos de toldo, carregados, a quatro mulas a um de fundo; e os guizos dos cavalos, e a gente dando os bons dias. Tudo isto entra em mim de tal modo que eu velho de 50 anos, com barbas brancas, não tenho outro meio de mostrar o meu agrado senão desatando a gritar. Viva Galiza!, enquanto as lágrimas me caem pelas barbas e toda a gente ri”.