Há poucas semanas, mobilizaçons estudantis paralisavam o ensino meio em defesa da saúde mental da mocidade; assinalavam a magnitude do problema e exigiam das autoridades maior investimento público na protecçom do bem estar íntimo das pessoas mais novas. Se nos retrotraéssemos apenas duas décadas, protestos como estes seriam impensáveis. Nem o padecimento mental era considerado por ninguém um problema de dimensons sociais, nem a confissom pública dos sofrimentos era bem acolhida polos mais: conceberia-se como umha fea expressom de fraqueza, ou no pior dos casos, como umha assunçom de desequilíbrio, o que supunha definitivamente adentrar-se na incomodidade do tabu.

A manifestaçom da fraqueza e um certo gosto pola condiçom de vítima virárom traços fortes da sociedade ocidental, segundo denuncia a extrema direita e apregoam teimosamente os seus grandes opinadores. A reflexom é atinada, e os reaccionários levam razom ao afirmarem que nenhuma empresa social importante, nenhum progresso colectivo, se conseguiu nunca instalando-se no laio. Mas estes mesmos opinadores enganam-se num ponto importante: nada há de contraditório entre reconhecer a própria debilidade e aspirar à força. Precisamente, qualquer processo de mudança num sentido de melhora começa polo reconhecimento, humilde, da própria condiçom.

Do sofrimento irredutível, consubstancial ao ser humano, e tam velho como a espécie, ocupam-se a filosofia e a religiom. A nenhuma proposta política sensata se lhe ocorre hoje em dia argumentar que o paraíso vai descer à terra, nem afirmar que os desacougos da morte, a doença, a dor ou a perda podem ser solucionados com engenharia social; mas a esquerda si tem apontado com acerto que muitos outros males som supérfluos, excedentes, provocados por formas de hierarquia injustas que condenam multitudes a viver na exploraçom e carentes de direitos. E dado que, década após década de contra-revoluçom neoliberal o espaço dos direitos mingua, certas formas de mal-estar íntimo aumentam. Os psiquiatras Javier Padilla e Marta Carmona, autores da obra ‘Malestares’, punham em causa recentemente que as terápias individuais e a consigna individualista do ‘melhora-te a ti mesmo’ puidessem reverter a epidemia de doença mental. Nesse sentido, e sem desautorizarem por inteiro a prática elemental da sua profissom –a atençom individualizada a dores vividas individualmente–, advertiam contra a confiança ingénua em que a multiplicaçom dos terapeutas detivesse o andaço. ‘A superaçom pessoal está a substituir qualquer tipo de acçom política’, afirmam Carmona e Padilla na imprensa. A privatizaçom dos sofrimentos está a impedir assim que estes se poidam purificar em formas de intervençom colectiva, diálogo e intervençom entre iguais.

Por experiência histórica, o independentismo galego tem muito a dizer nesta questom. Interiorizar um sentido para a própria vida, que se intensifica se é um sentido de grupo, multiplica a força das pessoas e confere-lhes um pulo impensável em circunstáncias mais convencionais, dominadas por intensidades menores; ‘se há um porquê, sempre há um como’, escrevera um pensador, e esta breve sentença explica o poder dos ideários. Do mesmo modo, enfrentar os desafios da vida ao calor dum projecto, enriquecendo o percurso com companheiros, camaradas ou irmás, fai-nos muito mais fortes em situaçons que mui poucas pessoas resistiriam em solitário, ou saberiam interpretar correctamente sem o contraste de opinions e vivências. Até o preso que subsiste numha celda arredada sem ver praticamente ninguém, vive esperançado sendo consciente do círculo social invisível que, na rua, o tem presente acotio.

Podemos dizer que o independentismo, e em geral todas as tradiçons da esquerda, vírom na acçom colectiva a medicina principal para abordar o que chamamos sofrimentos excedentes (nom inerentes à nossa condiçom). Mas como é sabido, o efeito dumha medicina nom depende apenas do potencial dos elementos que a componhem, senom do uso que lhe damos. Tomada em doses irregulares e demasiado escassas, os seus efeitos podem ser nulos; e consumida abusivamente, vira em veleno.

Os colectivos intermitentes, de vínculos febles, acçons esporádicas e privados de convívio físico poderiam dar conta da imagem dumha medicina inócua, tomada superficialmente, e cujos efeitos nom passam muito além do placebo, como demonstra o activismo virtual. E as organizaçons de longo termo, baseadas em lealdades de raiz, fortemente identitárias, e que tenhem a sua razom de ser no enfrentamento permanente, as periódicas crises internas, e o jogo de rivalidades perenes contra forças rivais e concorrentes, seriam exemplo do segundo. A esquerda –também o nosso independentismo– poderia escrever tomos de reflexom sobre o mundo querelhante e insalubre das suas próprias organizaçons, por vezes autênticas fábricas de desencanto, desencontro e, porque nom dizê-lo, padecimento mental. A medicina pode virar veneno ou, dito em linguagem filosófica, a corrupçom do óptimo sempre produz o péssimo.

A medida que um movimento avança para a sua madurez, devesse passar da formulaçom do que à concreçom do como. Na acçom sócio-política, como na vida, os males nom apenas procedem da doença, senom dos remédios aplicados torpemente. Para as medicinas funcionarem, cumpre conhecer o seu uso correcto e responsável; e isso apenas o proporciona umha longa experiência, na que a dor vivida joga o seu papel. Esta deita luz sobre as sombras que nos ameaçam, especialmente as que ajejam desde o nosso próprio interior.