Podem os movimentos alimentar-se apenas dum conjunto de ideias coerentes? Nom só. Num recente fio de internet, um companheiro matinava na importáncia essencial, para as causas colectivas, dum ‘alguém’ e dum ‘algures’. Cada verao de há já décadas, recordava esta pessoa, as paredes das ruas e vilas da Galiza inçavam-se com o rosto de José Ramom Reboiras Noia, e esta imagem, parte da paisagem estival para milhares de pessoas, deixou um pouso que nalguns casos teria efeitos políticos futuros. As ideias materializam-se em rostos e em espaços.

Os Estados marcárom sempre com monumentos os lugares emblemáticos dos seus momentos fundacionais, que os historiadores chamárom ‘lugares de memória’; esses fôrom os seus ‘algures’, que mui frequentemente se completárom com estátuas dos seus ‘alguém’: militares, estadistas, homens de letras (quase nunca mulheres), e mais raramente, cientistas. Como manifestaçom mui clara da amplitude social do galeguismo, e da sua pobreza política (paradoxo no que ainda vivemos), todos os grandes núcleos habitados do país tenhem o seu recordatório físico das nossas grandes poetas e criadores, praticamente nenhum dos espaços e figuras históricas do Antigo Reino. Mas em qualquer caso, salvando o défice de difusom dum poder galego, o movimento nacional supliu carências estatais com os seus próprios rostos emblemáticos, e os seus próprios lugares. Do Pico Sacro à Rua da Terra de Ferrol, passando pola Alameda de Compostela, Carral ou Augas Limpas, todos saberíamos marcar lugares que carecem de placas oficiais, e porém atesouram grandes significados.

Há ainda outros ‘alguéns’ e outros ‘algures’ nos que cumpriria deter-se. Nom todos os rostos importantes nas nossas vidas som rostos de heróis ou persoeiras, e nom todos os lugares essenciais som palcos solemnes de afirmaçom social e política. Há ‘alguéns’ e ‘algures’ mais velados que exigem atençom, pois dam chaves do trajecto que andamos.

Se um sociólogo ou historiador estudasse o nível de auto-organizaçom dumha sociedade registaria os índices de sindicaçom, a percentagem de voto em opçons rupturistas, o número de associaçons, a frequência e seguimento das greves, o nível de agitaçom universitária, a existência de fenómenos resistentes à margem da legalidade ou o número de presos e presas políticas. Eis as manifestaçons visíveis de correntes subterráneas.

Todos os fenómenos antes ditos nascêrom e nascem do roce em espaços comuns: no obradoiro ou na factoria, nas relaçons vizinhais cara a cara, entretecidas em redes familiares, na vida universitária entendida, como antigamente, como rito de passagem à idade adulta, com todos os seus rituais de convívio e pertença. O independentismo bateu certo a inícios deste século quando, ante a iminência dum processo de disgregaçom colectiva sem precedentes, ideou os centros sociais ou extendeu o roteirismo. Porque obviamente, nom há ‘algures’, sem os seus ‘alguéns’: os espaços de vida habitáveis e perduráveis, os lugares de lazer e conhecimento mútuo, levam o selo das relaçons humanas e das amizades, afectos e lealdades que ali nascem. Por isso, se esse mesmo académico quigesse estudar o debalar dos movimentos, toparia um correlato inequívoco entre decadência mobilizadora e decadência de espaços e de encontros.

Tem-se dito que o culmem do capitalismo sem corpos nem encontros é o ‘nom lugar’, cuja forma mais transparente é o aeroporto, um grande corredor onde nos cruzamos sem vínculo nem maior pretensom que transitar. Neste mundo inóspito, tentamos inventar soidades à nossa medida, ou fazer frutificar relaçons sem custes nem dor. ‘Nesting: o segredo da felicidade está na tua casa’, intitulava recentemente um artigo de imprensa, para descrever aquelas pessoas que se encerram nas moradas numha espécie de auto-subsistência garantida por artefactos tecnológicos, que fornecem lazer, compras online e comida por encargo. No mundo das relaçons íntimas, novas aplicaçons permitem um trato à carta que diminui a incerteza, e susceptíveis de suspenderem-se sem ruído nem trauma.

Se bem o mundo social e político pode migrar às redes e nelas despachar-se a gosto com iconografias dos heróis das luitas sociais, ou com fotos de alta definiçom dos nossos grandes lugares de memória, nada substitui as fonduras – e os riscos – do trato cara a cara num tempo e num espaço. Por isso, quando anos depois dum capítulo colectivo, nos reencontramos com umha das tantas pessoas que tivérom um passo fugaz polo movimento (e que quiçá ainda aderem às suas teses no mundo virtual), a sua sentença sobre os velhos tempos adoita ser a mesma: “hoje nom sei nada de ninguém”.

Tentamos definir a militante como a pessoa dotada de grande preparaçom ideológica, entrega em horas a umha causa, ou coerência rochosa numha linha; dum modo mais humilde, poderíamos entender esta figura como quem pratica o serviço a um projecto baseando-se no trato sostido, no respeito, no convívio, no encontro em lugares quotidianos e referenciais que desafiam o nomadismo e o desacougo.

Os processos emancipatórios formulam perguntas clássicas e inadiáveis: “que fazer?” E também: “como fazê-lo?”. Para nom ficarem incompletas, ainda teriam que esclarecer estas questons obrigadas: “com quem fazê-lo?” “Onde fazê-lo?” Estamos perdidos se continuamos caminhando sem ninguém e percorrendo a terra de ningures.