(Imagem: hiveminer.com) “Nom tenho medo ao teu dito / nem medo dos teus meigalhos /que levo umha vacaloura /e quatro dentes de alho”

Do norte de Portugal à Escandinávia, extendia-se em outros tempos umha imensa massa florestal atlántica, da que hoje ainda permanecem restos importantes. Parte dela é carvalheira ou touça, e nela habita mormente o animal que ocupa a secçom “Terra” desta terça feira: o escaravelho mais grande do continente, que mora no norte da Península Ibérica, ascende pola cornixa occidental do continente (agás na Irlanda, onde se extinguiu) e chega à Europa central e oriental. É a vacaloura, associada de sempre ao carvalho.

O grande naturalista Linneo chamou-no, a finais do século XVIII, Scarabeus cervus”, e umha boa parte das línguas europeias associam este escaravelho com o veado, pois identificárom-se as mandíbulas dos machos (erroneamente) com grandes cornas. Assim, para os ingleses (que apenas conservárom a vacaloura no sul do país) é o “stag beetle”; para os franceses, “Lucane cerf-volant”; para os espanhóis, “ciervo volante”, e mesmo para os nossos vizinhos além-Minho, que falam de “cervo voante”, ainda que também empregam os termos “vacaloura” e “abadejo.” Porém, na Catalunha é o “escanyapolls”, semelhante ao nosso “escornapitos”. O nome procede da arreigada crença popular de o escaravelho fazer incursons depredadoras no galinheiro, o que resultou ser falso. Mais umha vez, o nosso idioma volve desdobrar toda a sua riqueza, pois além das denominaçons citadas, topamos a de escornabois, alicórnio, carouca e cornetám.

Os cientistas denominam-no “Lucanus cervus” e estabelecem a sua pertença à família Lucanidae e ao género Lucanus. Salienta o seu tamanho, e também um marcado dimorfismo sexual que dá às mandíbulas dos machos um tamanho descomunal, maior que o resto do corpo. As hembras som mais pequenas e escuras e as suas mandíbulas, bem que discretas, tenhem também umha grande força. De resto, o seu corpo é o típico dum escaravelho: cabeça pequena, tórax imenso, e abdome relativamente pequeno. Os três pares de patas, de aparência fraca, som muito fortes, e permitem à vacaloura agatunhar com soltura polos troncos das árvores, levando todo o peso do seu corpo robusto. As asas permitem-lhe voar a umha velocidade de 6 km/h, e assim foge dos seus depredadores habituais: pegas marças, aves de rapina em geral, raposos, teixugos, e vários tipos de mustélidos. Como a sua vista é defeituosa, recorre a químio receitores nas patas e antenas para detectar oportunidades e ameaças.

Quiçá o aspecto menos conhecido deste animal seja o facto de a maior parte da sua vida ser larvária: passa vários anos (até cinco) alimentando-se da madeira podre do carvalho, até que no cúmio do desenvolvimento, sai à luz do sol como o grande escaravelho que conhecemos. Mas com tal forma nom vive mais dumhas poucas semanas. Alcança um tamanho de até 8 centímetros, e as brigas dos machos em época de zelo som proverbiais pola sua fereza. Trata-se de pelejas a morte, muitas vezes livradas na pola dumha árvore, que soem acabar com o derrotado deitando o seu corpo a terra. A pesquisa mais recente documentou que também existem liortas entre machos e hembras, mas neste caso condicionadas pola desputa de comida.

A hembra do escornabois apresenta umha cor mais escura. Imagem: flick.co

A vacaloura na cultura popular

As sociedades tradicionais, e entre elas a galega, tentárom representar graficamente o mal humano, e para isso apugérom-lhe as formas mais apavorantes que contemplavam na natureza: cornos e cairos, gadoupas ou escamas. O demonho representa-se com cornos e cola, e o dragom, o maligno nas culturas cristás, nom é mais do que umha grande serpe, ou um grande lagarto. Com um sentido da vulnerabilidade grande, todos os povos utilizárom umha panóplia de recursos defensivos simbólicos: muitos deles seguiam a lógica, segundo analisamos nesta secçom ao falarmos das unhas do porco teixo, do “Similia Similiabulus”: isto é, defender-se com objectos feos ou apavorantes do que se considerava, por seu turno, feo e apavorante. Eis o papel de protecçom sobrenatural adjudicado aos cornos de cervo, aos cairos do porco bravo, e, obviamente, às cornas do escornabois.

Vicente Risco, junto com Cuevillas, foi um dos intelectuais impressionado
polo peso da vacaloura na cultura popular. Imagem: farodevigo.es

Vicente Risco consignou, nos seus estudos antropológicos, como muitos galegos e galegas do século XX ainda levavam pendurada ao pescoço umha saca com cornos de vacaloura, que também podia ser umha cadeia ou um relógico. Há constáncia escrita do chamado “anelo do alicórnio”, umha peça de metal valioso que levava engastada parte do animal. Os pescadores levavam as mesmas cornas para ter umha jornada proveitosa, e na água do pam podiam-se colocar para que levedasse mais aginha. No Berzo, até nom há tanto tempo, vizinhança punha na janela cornas de vacaloura.

Em geral, as formas feas e “demoníacas” serviam precisamente para combater o demonho: assim, a vacaloura protegia contra os meigalhos, o veleno da cobra, a acçom das bruxas, ou a má influência vizinhal, que tantas vezes se manifestava como inveja. E assim, os amuletos de cornetám protegiam os mais fracos: as crianças sobreviviam assim assistidas, segundo se cria, ao enganido (raquitismo), o tangaranho, e o mal de olho.

A vacaloura até a actualidade

Um nome, ou uns nomes, sonoros, um hábitat situado no mais emblemático da natureza galega, poderosas conotaçons sobrenaturais…a vacaloura tinha-o todo para se converter em icona. Em Portugal, desde o 2016, funciona o Projecto Vacaloura, que visa a protecçom da espécie, qualificada como vulnerável pola legislaçom europeia, ante o recuar das carvalheiras e o avanço da industrializaçom. Os seus membros procuram-na, normalmente no verao e no silêncio da noite, para fotografá-la e difundir a sua existência. Ao que parece, já aumentou a sua presença registada num 36% em todo o território nacional. Mais perto de nós, em Compostela, funciona o Santuário Animal Vacaloura.

Disco dos Skornabois de 1996. A vacaloura estivo presente na simbologia bravu

As pessoas que fórom crianças ou adolescentes na década de 90 recordarám o Javarim Clube e a resonáncia que alcançara a cançom “Carminha Vacaloura”, do Mestre Reverendo. E quem faziam as suas primeiras incursons na militáncia arredista, influenciados polo bravu, lembrarám o grupo marinhao Skornabois, habitual das citas de lazer mais combativo. Som algumhas das pegadas deste escaravelho imponhente, que o fixérom familiar até mesmo para umha parte da Galiza mais urbana, aquela preocupada com o nosso património e a nossa riqueza colectiva. Ao cabo, defender a vacaloura é defender todo um ecossistema autóctone posto em perigo polo monocultivo eucalipteiro e a praga incendiária.