O escritor Antonio Gamoneda conta nos seus escritos um dos grandes traumas da sua infáncia: as burlas que tivo que aturar na escola por levar postos os sapatos da sua avoa. Uns sapatos usados e gastos, de mulher, que eram os únicos que podia permitir-se na miséria da posguerra. Os risos dos companheiros ferírom-no tanto que o recordo o acompanhou até a velhez.

No mesmo contexto histórico aparecem também humilhaçons, e de novo uns sapatos. Na carta dum republicano do Baixo Minho condenado a morte trás o golpe de 1936, o que vai ser executado declara que o seu único delito era ‘ter luitado porque os seu filhos puidessem levar sapatos’. A classe obreira da época, com os seus partidos e sindicatos, fazia umha ênfase especial no direito a vestir-se com decência, na higiene e em certa elegáncia.

Ambas pessoas, cada umha com o seu infortúnio, padecêrom a mesma carência. Umha carência material que as fazia passar frio? Umha carência estética que os fazia ver-se (a eles próprios ou às crianças) como desamanhados e sujos? Quiçá ambas cousas mas, mui por riba do material e do estético, há umha carência que se nos fai insoportável: a carência de dignidade. E quando umha pessoa é olhada por outra desde umha altura superior, essa carência é evidenciada. Nenos sem sapatos, pretas, galegofalantes, torturados, mulheres maltratadas. As feridas físicas, a fome e o frio, nom som nada comparadas com as feridas na alma.

Ainda há um feito mais insoportável que ser contemplado desde acima: nom ser contemplado. Por isso um refrám espanhol diz, com muita penetraçom: “se queres tornar-te invisível, fai-te pobre.” A mirada desprezativa, a mirada comiserativa, a mirada burlesca, som, por um pequeno chanço, mais soportáveis que a falta de mirada. Qual é a razom? Para estarmos vivos, precisamos umha certa dose de amor por nós mesmos. Como a nossa própria valia só pode ser validada através das olhadas das pessoas, nom olhar-nos é o equivalente a matar-nos. A autoestima é a consciência de que nos olham com respeito. O narcisismo é o pánico à falta de olhadas sobre nós, substituído pola permanente chamada de atençom.

Os manuais de auto-ajuda do capitalismo roubárom-nos muitas palavras importantes: amor ou confiança, resiliência ou esperança. Também autoestima, que parece um termo vazio, tirado dos consultórios dos suplementos do domingo. Mas é básico para a saúde das pessoas, e a saúde das pessoas é básica para a saúde da política. Incluindo nela, é claro, a luita arredista que livramos.

Através da nossa dignidade e autoestima, os seres humanos sentimos que temos certa incidência nos eventos; que nom somos apenas joguetes em maos de forças naturais incontroláveis, sistemas políticos e económicos anónimos, ou vontades nocivas de outras pessoas. Quando a autoestima falta em povos e em pessoas, procuram-se mecanismos compensatórios para suplir a sensaçom de incerteza e desamparo. O submisso ou o servo aprendeu mui bem essa liçom. Decatou-se de que custa obter condiçons ventajosas desenvolvendo a personalidade e seguindo o curso do pensamento genuino; por isso apostou por anular-se, mimetizar-se com o que o amo espera dele, e assim receber parte das faragulhas que caem da mesa do poder; em outro extremo das coordenadas de carácter, o pessimista crónico fai algo semelhante. Dirá-se que nom tem porque ser um profissional da obediência e nom manca a ninguém, o que é certo. Mas partilha com o servil a vontade de sobreviver a condiçons incontroláveis. Já que o mundo é duro, sujo, injusto, predizendo o mau que vai vir e adestrando-se por antecipado em aturá-lo, amortece a sensaçom de incertidume. O vitimista, por seu turno, desdobra também umha certa estratégia para proteger-se do meio hostil. Já que nom é possível desfazer-se da condiçom de oprimido, abandeira-a, enarbola-a, e assim concita a atençom dos compassivos. Na opressom sofre-se muito, mas sem querer superá-la, pode-se obter calor humano.

Qualquer pessoa -e qualquer tipo de carácter- coincidirá hoje que o mundo é um meio duríssimo e progressivamente asalvajado; selvagismo que medra proporcionalmente à falta de recursos económicos, culturais, e ao grau de inconformismo político que o indivíduo se atreva a manter. O salve-se quem puder neoliberal, doutrina da imensa maioria da nossa sociedade, valora à sua maneira qualquer das estratégias de salvaçom que apontamos: conhecemos muitos servos a gozar de tranquilidade vital, fortunas, redes de protecçom do poder, e mesmo protecçom mediática; conhecemos muitos pessimistas que tinham, com efeito, razom à sua maneira: “já cho dizia eu”; “isso nom ia funcionar”; “nom sei para que vos metedes em essas cousas, acabam como acabam”. A sua estratégia de minimizaçom do sofrimento resulta eficaz. Um pessimista nunca se decepciona, e um optimista afronta desilusons profundas. Nos movimentos populares, enfim, temos topado com vitimistas a moreias: pessoas que exibem quase como umha virtude a debilidade das causas, as suas fraquezas pessoais, o carácter inocente e cándido de activistas pacíficos, cujos coraçons bondosos só recebem do Estado toneladas de incompreensom e crueldade. Nessa espiral de compaixom popular e desprezo do poder, os vitimistas processam o infortúnio.

Som estratégias inteligentes? Se a vida e a política consistem em minimizar danos antes que acadar logros, som-no. Se, pola contra, umha existência plena é concebida como satisfacçom e orgulho com umha mesma, e por extensom, com o colectivo ao que pertence -naçom, classe, movimento- a estratégia é nefasta. Por isso por trás de tantos quadros psicológicos servis, pessimistas ou vitimistas nom detectamos a satisfaçom da vida bem vivida, senom o rencor, a frustraçom e o complexo.

Obteremos certa sensaçom de controlo sobre a vida -portanto de poder- exercendo as nossas faculdades plenas, no individual e no colectivo. No colectivo, esse exercício chama-se militáncia, que é a forma de fundir harmonicamente mil distintas destrezas pessoais num fim que nos transcende. Só quando um povo milita e se fai digno, olha e é olhado em igualdade polo mundo.