No momento em que a fiscalia da Audiência Nacional fijo públicas as suas petiçons contra militantes de Causa Galiza e Ceivar, volvia ao primeiro plano das nossas preocupaçons um velho contencioso: a do Estado espanhol contra o independentismo galego. Em pleno Processo Trevinca, a ameaça das ilegalizaçons paira de novo. Conseguirá o Reino eliminar de vez este movimento, ou poderá quanto menos reduzi-lo a umha mera corrente de opiniom, sem organizaçons nem estratégia? Esta tensom tem mais de quatro décadas de vida, sem que a resoluçom se alvisque clara. O Estado nom disolveu o arredismo; mas o arredismo tampouco virou um movimento de massas, livre de interrupçons e comportamentos circulares.

O pensamento galego -nom se importa se de direitas ou de esquerdas, mais ou menos nacionalista- é , de maneira hegemónica, desesperançado e vitimista. Vai-nos mui mal, o país colecciona derrotas, somos um desastre, habitamos na penúria; se polo menos fóssemos como outros…com os óculos deformadores da agonia, o balanço independentista é desolador: demasiadas organizaçons de curta vida, demasiadas cisons, demasiadas promessas incumpridas, apoio social escasso. E a pergunta retumba, insistente: porque nom podemos?

Muitas vezes, o acerto dumha resposta está em funçom do pertinente da pergunta. E nesta ocasiom, apostamos por inverter o interrogante. Porque existimos? Porque resistimos? A soluçom à incógnita nom é tam óbvia. Umha rápida olhadela ao mapa da Europa occidental revela-nos a existência de velhas naçons quase esvaecidas. Meritórias na sua persistência, mas com dificuldades mesmo para sosterem um projecto de naçom-cultura: Cornualha ou Friuli, Astúries ou Frísia. Dada a nossa tópica, proverbial timidez na afirmaçom, poderíamos ser umha delas. Mas por crítica que for a nossa situaçom linguística, demográfica ou política, nom o somos nem de longe.

Se tomarmos os manuais de história, vemos que o esplendor reivindicativo das décadas de 70 e 80, que produziu o florescimento de movimentos alternativos muito variados, alguns efémeros, foi arrasado pola vaga individualista da sociedade neoliberal. O independentismo de posguerra emergeu nesta vaga internacional de dissidência, mas as enormes transformaçons sociais que varreram organizaçons revolucionárias, guerrilhas, experiências associativas, e geraçons massivas de militantes, nom consumou a desapariçom das propostas arredistas. Se é certo que para muitos galeguistas das décadas de 30, 80 e 90 o independentismo foi umha moda juvenil, umha forma de reivindicaçom recriativa para os anos estudantis, antes de aterrarem nas suas moradas ou no nacionalismo institucional, o movimento foi e é muito mais do que isso. Tivo militáncias de longo alento e organizou projectos de vida.

E se recorrermos, enfim, as explicaçons da sociologia e da política, damos com que os contextos sócio-políticos nos que se desenvolveu a causa galega nom fórom favoráveis. É difícil topar um forte nacionalismo europeu que nom contasse com poderosos aliados: a igreja que alentou consciências como a basca; a emigraçom enriquecida americana que financiou o arredismo irlandês; o capitalismo fabril e comercial que reforçou a identidade catalá; ou mesmo as potências internacionais que animárom as pequenas naçons centroeuropeias para esfarelarem o império austro-húngaro. Portugal, que apriori poderia conceber-se como um sólido apoio da Galiza, olhou sempre para Espanha. E as elites intelectuais e funcionariais que galeguizárom o país nos últimos séculos estavam compostas, maiormente, por pessoas que som independentistas na intimidade, sem a resoluçom suficiente para organizarem ou apoiarem um movimento de secessom com Espanha. Com ainda maior propriedade do que os irmaos do norte, poderíamos dizer sem sensacionalismo algum que sempre fomos, literalmente, ‘nós sós’. O Reino de Espanha e a sua polícia política fórom muito cientes disto e, numha sucessom inacabada de rusgas, desde finais dos 70 até a actual Operaçom Jaro, tencionárom desangrar e destruir pessoalmente, na rua e nas prisons, os contingentes humanos dispostos a encetar o caminho da independência. A censura da mídia empresarial, e o cordom sanitário posto à nossa volta polo nacionalismo institucional, desejoso de obter respeito do poder, deveriam fazer o resto. Todo apontava para a nossa extinçom.

Logo, a nossa dupla pergunta é totalmente pertinente. Porque existimos? Porque resistimos? A explicaçom mais recorrente aponta à qualidade militante. Em quatro décadas que vírom enfraquecer-se a ideia de utopia, afortalar-se os impulsos individualistas, integrar toda demanda política nos protocolos eleitorais e administrativos das democracias, a subsistência dumha velha escola militante surprendia a todos e seduzia alguns. Neste mês lembramos o nosso querido Samartim Bouça ‘Martinho’, mas podemos e devemos ampliar a lista a Duarte Abad Lojo, Ramom Muntxaraz…e umha lista bem longa -para os tempos que tocárom- de camaradas escuros que nem aparecem citadas nem quereriam aparecer, porque a sua satisfacçom foi o dar quase todo, ou todo, em troca de nada, e sentir a alegria de ver florescer a sua Terra. A força de tais pessoas foi determinante em muitos contextos históricos, e no nosso traduziu-se aliás em manter vivas organizaçons precárias, alimentar com a economia da classe trabalhadora projectos colectivos, e atrair mais e mais pessoas às fileiras da Galiza.

Mas nenhum movimento colectivo se explica apenas pola ética, nem tam sequer o mais nobre. Tampouco polo sentimento de carragem e opressom, que pode incendiar o ánimo das pessoas, mas consome-se rápido e provocam estoupidos passageiros. As cousas som bem mais complexas, e até nas utopias fantasiosas está activo um elemento de fe, umha conviçom segreda de movermo-nos por umha razom sensata, realizável. É assim na Galiza? Junto com os traços negativos que nos lastram, e que antes apontávamos, existem certas forças latentes na vindicaçom arredista que a fam crível e sedutora para sucessivas geraçons. A consciência da marginaçom do país está tam arreigada que salta sectores políticos e fijo-se motivo comum do discurso político desde o nascimento do regionalismo. A assunçom de sermos umha terra rica -no material e cultural- continua viva apesar das toneladas de auto-ódio; falamos e escrevemos umha língua em perigo, mas de dimensom internacional, como reconhecem mesmo sectores nom reintegracionistas. E o nosso movimento nacional, do que podemos salientar mil insuficiências e inseguranças, tem umha trajectória limpa e nobre. Nunca se associou com ideias escuras, como puidérom fazer o nacionalismo croata ou parte do bretom, e fundiu-se sempre com os interesses legítimos das classes populares. Umha simpatia mui difusa pola ideia nacional -que é o correlato político da identificaçom emocional pola Terra, as tradiçons e a paisagem- poderia transitar facilmente à reivindicaçom dumha República.

Nas pessoas e nos povos há querências latentes, por vezes inexpressadas, que enraizam nos estratos mais profundos, e por isso aguardam o momento preciso para sairem à luz com toda a sua força. Acontece com o lado escuro da personalidade: o depósito de complexos, frustraçom, ódio, medo, fermenta na psique e, quando a ocasiom o permite, abrolha em forma de fascismo; mas acontece também com o nosso lado nobre: o amor e a esperança, o sonho de justiça e o orgulho de ser, podem coalhar social e politicamente em propostas de emancipaçom. Os mandos da repressom e os jornalistas servis sempre o soubérom, e por isso empregárom toda a sua artilharia contra ‘organizaçons marginais’ e ‘grupúsculos’, por utilizarmos as suas palavras. Nós sabemos que o temos mui difícil, como também sabemos que podemos consegui-lo.