Nas páginas d’A Fouce, os arredistas chamam o Partido Galeguista ‘Partido dos Bombos Mútuos’. Os militantes da Pondal criticam a prática, mui comum entre intelectuais, das louvanças recíprocas como forma de auto-promoçom pessoal. Preocupados com as suas carreiras antes que com as exigências colectivas, os galeguistas adiam sine die a luita pola República galega: “n’A Nossa Terra diz-se que o partido luitará pola grandeza de Hespanha, pola regeneraçom da República e ao final de todo pola liberdade da Galiza. Ah, malditos! Ao fim tirastes a careta.”

O tom é sempre mui duro e parece nom deter-se ante nada. Quando a direita republicana envia ao exílio Alexandre Bóveda e Daniel Castelao, A Fouce questiona em editorial o discurso da oficialidade galeguista. “Nom se trata de outra cousa que de umha singela questom de traslado”, que terám que afrontar com normalidade quem escolhérom a profisom funcionarial. “Falar de desterrados e empenhar-se em olhar mártires neste assunto é o colmo da brandura, denuncia umha pequenez moral tam grande que quase incapacita”. Para os arredistas “deve observar-se como princípio moral político a nom dependência económica com o Estado opressor baixo nenhuma forma ou aspecto que puider menoscabar a liberdade individual. Um nacionalista tem que repudiar todo o que signifique dependência com o Estado espanhol.” E se do que se trata é de amolecer a crítica polo prestígio dos criticados, os arredistas negam-se: Castelao é umha grande figura da arte, mas também “um político cheio de medos, de inseguridades, falto de firmeza e de afirmaçons categóricas.”

Oito décadas mais tarde, cumpre perguntar-se se os arredistas levavam razom. Os seus juízos tenhem-se apresentado como produto da visom exaltada do emigrante, alheio à realidade da Terra. Porém, uns anos antes, no interior do próprio galeguismo, a correspondência revela realidades de interesse: “o Risco está algo atado -diz Antom Vilar Ponte a Fermín Penzol durante a ditadura de Primo de Rivera-, porque como som tam bárbaros os que mandam, teme que o deixem sem o seu único meio de vida: a cátedra. O Castelao, polas suas ataduras à vaga burocrática de Estatística, ocorre-lhe cousa semelhante.” E até um galeguista tam moderado como o jovem Rafael Dieste chamava a atençom na imprensa sobre o carácter vacilante do movimento: “o nosso galeguismo medra palente e esgalichado no fundo sombrio de seminários eruditos.” Aliás “um dos erros que ao nosso juízo cometeu o galeguismo foi o de ir podando do seu ideário todo aquilo que puidera fazer desconfiar os desconfiados e temer aos medonhentos. Pensou-se deste jeito fazer umha juntança mais grande e resultou mais desmedrada.”

Identificador dum militante das Irmandades da Fala. Imagem: wiktionary.com

Pouco depois, a extrema direita espanhola demonstrou o que estava disposta a respeitar a timidez galega: liquidou um Estatuto nom nato, perseguiu a língua e a cultura, proibiu organizaçons, assassinou e encarcerou. No exílio, e segundo relata Castelao, a esquerda hispana bloqueou quanto puido as instituiçons galegas e recuncou numha incompreensom profunda, aparentemente incurável, da nossa identidade. Redondeando a desfeita, na exausta Galiza interior, umha promoçom de militantes educados no monocultivo dos livros abandonou a luita política e o próprio ideário nacionalista. Os arredistas levavam razom: o gradualismo nom favorece a toleráncia do inimigo, nom garante a empatia do adversário, e tampouco forja activistas resistentes.

Resulta tentador aplaudir incondicionalmente os nossos antecessores na Argentina. E sem embargo, um contra argumento, muito mais que um matiz, deve ser levado em conta: moderados como Bóveda ou Vítor Casas fôrom fusilados e enfrentárom a morte com grande dignidade; e Castelao, que na ditadura de Primo aparecia a olhos de Vilar Ponte como hesitante por causa de dependências laborais, enfrenta um calvário no exílio por umha lealdade inquebrantável ao ideal. Político, artista popular, teórico, consome os anos finais da sua vida num combate surdo contra a desorganizaçom e pola memória da causa galega. O povo, que sempre o estimara e respeitara, agora venera-o. As suas obras fórom lidas e relidas, as suas láminas celebradas; a sua despedida massiva na Argentina foi seguida dum recebimento digno e combativo na chegada a Bonaval. Sem nenhum exagero, Blanco Amor afirmou na sua morte: “ninguém na nossa Terra acadou semelhante unanimidade de amor. Queriam-no, ainda que caladamente, até os seus inimigos políticos. Outros nom os tivo.” Numha naçom de cépticos, Castelao ergue um estado de ánimo infrequente, emocionado e cheio de esperanças.

Julgamos as pessoas polo programa político que abraçam e ignoramos assim a maior parte do seu ser. Os nossos devanceiros d’A Fouce faziam o mesmo, e desse modo ignoravam ou malinterpretavam parte da potência daquele galeguismo. Havia um fundo de virtude que tivo enorme transcendência histórica.

Trazida dos restos de Castelao a Sam Domingos de Bonaval em 1984. Imagem: Sermos Galiza

Virtude? Em contextos de pragmatismo ruim, como o galego, a palavra tem muito de incómodo e impopular, inclusive no movimento político. Parece um chamado ao dever incómodo, a um comportamento intachável que pode suscitar admiraçom mas, ao cabo, nom leva a nengures. O sentido pejorativo que acadou a palavra ‘purismo’ defende o mesmo ponto de vista. Descartado o bom por impossível, a indefensom aprendida galaica valorizou o mal menor como umha forma de sabedoria: “entre pau e pau o lombo descansa”, diz o nosso refraneiro mais indigno. E como advertência contra as grandes empresas, o dito popular sentença: “os valentes morrem na guerra.” Até um galego tam enteiro como Ben-Cho-Sey incorria nesta ideia ao enteirar-se, traumatizado, da execuçom de Bóveda: “se na Galiza houvesse homens conscientes abondava a morte de Bóveda para erguerem-se até as pedras (…) Ele que pujo toda a sua fe no Rexurdimento da Galiza vai dar a sua vida num sacrifício inútil (…) estes escravos indecentes e covardes nom merecem que por eles se verta nem umha pinga de sangue generosa de homem tam nobre.”

Nos momentos essenciais, ainda nas coordenadas ordeiras da pequena burguesia, Castelao demonstrou ser virtuoso. Praticou em circunstáncias extremas a virtude no seu sentido literal: “disposiçom constante do espírito que nos induz a exercer o bem e a evitar o mal.” Mas também foi quem, e fijo-o como poucos, de utilizar a virtude na outra acepçom que regista o dicionário: “qualidade própria para produzir certos e determinados resultados. Propriedade, eficácia.” Virtude é em certo sentido sinónimo de poder, entendido como habelência para operar mudanças. Na nossa cultura popular a “mulher de virtude” era a curandeira, isto é, a que sandava.

Como o fijo? Nada tam difícil de descobrir, e nada menos relacionado com os programas políticos e os seus montes de palavras solenes e impessoais. Como outros muitos médicos de esquerdas, ou médicos-criadores dotados de sensibilidade especial, entendeu os dramas humanos mui além da sua dimensom puramente fisiológica. “Há um número surprendentemente grande de médicos que se tornaram poetas, romancistas e dramaturgos de destaque, e houvo vários que reflectiram com profundidade sobre a condiçom humana”, diz-nos neurobiólogo António Damásio: “os grandes médicos tenhem sido, além de bem versados no essencial da fisiopsicobiologia da sua época, especialistas no que toca aos conflitos do coraçom humano.” Se a reacçom automática ante o sofrimento alheio é o noxo ou o rechaço, Castelao olhou-no em fite e atendeu-no com respeito, apesar de a sua vocaçom profunda ser a arte, e nom a medicina. Mesmo antes de ser nacionalista, por exigências do seu primeiro ofício, estivo rodeado de doentes, moribundos, pobres e explorados. Idêntica atitude translozem os seus desenhos, habitados por cegos, eivados, pobres, emigrantes empobrecidos. Também por desleigados, indianos enriquecidos, caciques e senhoritos, mas sempre aguilhoa com engenho e nom com ódio.

Na Galiza ou na América, o povo sempre está nas láminas de Castelao. Imagem: castelaonarede.wordpress.com

O galeguismo era um movimento que suscitava o receio dos arredistas, a desconsideraçom ou desprezo do movimento obreiro e o rechaço das elites galego-espanholas. Ambíguo, utópico, pouco pragmático, indefinido, sofisticado demais. Numha sucessom inacabável de ataques ao projecto -por causas e razons diversas-, as críticas detinham-se ante a figura do rianjeiro. Na imprensa anarquista, Castelao era excluído dos insultos que os proletários lançavam a um “movimento de eruditos” enleado em preocupaçons de acomodados. Na guerra civil, ganha-se a simpatia dos comunistas; e antes de chegarem os anos violentos, os vozeiros da orde e pensadores conservadores abraiam-se das suas dotes humanas: “Tem a modéstia, a singeleza, o engenho e a bondade”, diz-se nas páginas de ‘El Noroeste.’ “Tem algo de certo a sua caricatura… -diz Wenceslao Fernández Flórez, escritor que em 1936 apostará polo fascismo- a sua bondade, a sua sobriedade, a obsessom com que ama a terra que a viu nascer, um amor onde confluem todos os outros amores. Saberia estar na cadeia como Gandhi, saberia morrer como o alcalde irlandês. É um santo galaico.”Os correligionários nom exageravam o retrato, senom que confirmavam o que todo o mundo afirmava. Para Otero Pedraio “Castelao era grande senhor do tempo, endejamais se lhe viu aforrar um minuto. (…) Tinha um acento, um sorrir, de alegria e recompensa (…) Nom tinha senso da realidade do mal. Por isso chorava, como eu o vim muitas vezes, quando o mal era verdadeiro e nom se podia negar.”

Por um erro retrospectivo, tendemos a analisar as jeiras de emergência dos movimentos como cenários especialmente favoráveis nos que todo tinha, por força, que correr bem. Umha atençom rigorosa a cada época, ainda, oferece umha imagem bastante diferente. Castelao e a sua geraçom nom topam nos seus inícios um país a ferver, senom umha velha naçom decadente em massiva desbandada, que vira já disolver-se movimentos políticos na sua defesa, e desintegrar-se sem relevo passadas promoçons de literatos. “Depois da morte de Alfredo Branhas, cria-me o último sobrevivinte dum povo suicida” escreveu daqueles tempos, justo antes de conhecer Vilar Ponte. Com a engrenagem partidária das Irmandades a funcionar, nom o tivo doado. Existiam fatos de patriotas entusiastas e eficazes, mas em termos gerais dominava umha péssima cultura organizativa baseada no incumprimento e a impotência. Os nacionalistas teoricamente mais puros eram os mais ineficazes e umha cultura cissionista lastrava-o todo desde o início. “Que desastre, seguimos como no século XIV. Somos galegos e nom nos entendemos”, dizia Risco a Lousada Diegues na sua correspondência.

Apesar de todo, o renascimento galego foi para a frente. Os historiadores analisarám que confluências de factores o fixérom possível, mas em nenhum caso poderám contornar o halo de respeito e força moral que Castelao foi quem de imprimir-lhe. O povo intuiu que naquele debuxante e escritor sem elitismo algum havia fe, e com fe foi correspondido. O genocídio de 1936 rematou, entre muitas outras cousas, com esse perfil de liderança e com esse sentido humanista e quase místico da militáncia política. A partir dos anos 60, a Galiza tivo legions de soldados entregados, camaradas escuros, e umha imensa rede de voluntariado popular que mantivo o em pé o projecto nacional. Nom volveu a aparecer, porém, umha figura dessa dimensom. Afixemo-nos a líderes conspiradores, burocratas, ególatras e impertinentes, e rematamos por pensar que a luita política -também a nossa- era um remedo do jogo de focos e cadeiras dos nossos inimigos. Mais recentemente, com as verdadeiras relaçons humanas substituídas polo sucedáneo das relaçons digitais, o trato sólido entre pessoas entrou em crise. Desde as nossas soidades tecnológicas, custa-nos muito conceber a prática da irmandade em carne e osso, baseada no convívio prolongado, na solidariedade e nas discussons francas. Se Castelao se erguesse hoje arrepiaria-lhe o desfile narcisista de posiçons singulares, o diálogo de surdos e o barulho permanente. “Eu som um home de barro, como os demais, que nom pretende ser original. Som um homem do povo, filho de marinheiro, emigrante como vós quando fum neno”, deixara escrito.

Mas se o ser humano, em qualquer causa, se agrupa por ambiçom, na busca de rivalidade e protagonismo, também o continuará a fazer por empatia, ilusom e respeito. Estas qualidades reunem-se por vezes arredor dum indivíduo ou pequeno grupo, e entom as duas virtudes -a rectitude e a eficácia- fusionam-se numha única qualidade excepcional.