‘Feros corvos do Jalhas / que vagantes andás/ em selvagem companha / sem hoje nem manhá / quem puidera ser o vosso companheiro / pola gandra longal.’ (Eduardo Pondal)

O nosso escritor cantou, como nenhum outro poeta galego (que saibamos) esta ave negra, grande e estridente, possivelmente impactado pola imagem dos seus voos circulares sobre os montes de Bergatinhos. Nele viu a independência, o espírito indómito, a inspiraçom da natureza. Aliás a inteligência e a memória, as capacidades proféticas que os antigos viam nesta ave, e que tam bem acaem ao ‘fili’ gaélico, ao bardo. Aproveitamos esta vindicaçom pondaliana do corvo para continuar a nossa rota semanal de conhecimento da Terra, e de passagem para rebater os tópicos mais simplórios que condenam esta ave às margens.

O nome comum ‘corvo’ serve para denominar um género descrito por Linneo em 1758, e que engloba aves diversas. Em rigor, a palavra galega ‘corvo’, como a inglesa ‘raven’, denomina o ‘Corvus corax’ ou corvo carnaçal, mas por extensom aplica-se ao seu parente mais pequeno, o corvo viaraz, ou ‘Corvus corone’ que os espanhóis chamam ‘corneja’. Pegas e gralhas som parentes mui cercanos. A semelhança entre ambos ‘corvus’ é grande, e de facto podem hibridar-se. O primeiro é umha ave de grande tamanho, que beira os 70 centímetros, e cuja envergadura de ás abertas supera com folgura o metro. Habita fundamentalmente as zonas de monte e montanha e os terrenos esgrévios, ainda que a sua capacidade adaptativa é grande. Por esta razom topamo-lo em muitos arrabaldos das cidades. No céu, distinguimo-lo polo seu planejar e o seu gosto polo pairar em círculo. A longevidade que alcança (até 39 anos), a sua capacidade para imitar cantos de outros animais, e a sua habelência com ferramentas, chamárom a atençom dos devanceiros.

Ignorácia e medo

Inclui-se dentro do catálogo de espécies cinegéticas, a sua saúde como espécie é forte, e portanto nom é objecto de especial atençom. A sociedade cristá medieval tratou-no com receio, por associá-lo com a morte e os maus agoiros; o mundo campesino odiou-no polo mesmo motivo, e dedicou-lhe sentenças: ‘corvo agoireiro, vai-te ligeiro, que nesta porta nom há carne morta’, diz a tradiçom galega. Ao ser grande afeiçoado ao milho e aos cereais, e ao estragar muitas colheitas labregas, a rejeiçom aumentou. ‘Corvos em bandada, ou sombra ou preada’, confirma o nosso refraneiro, associando-o ainda com mais força ao mundo da escuridade.

A sociedade contemporánea, que nom o pode incluir no seu catálogo de ‘recursos naturais’ (alimentares, mercantis, turísticos) prefere ignorá-lo. E se bem os corvos estám muito presentes mesmo nas nossas cidades, nomeadamente naquelas ainda ligadas ao rural, apostamos que boa parte das crianças nem saberiam distingui-lo. A ignoráncia é umha forma particular de desprezo, e com esta achega tentaremos combatê-la.

Natureza, contradiçom e compreensom

Na visom unilateral das cousas das sociedades de consumo, a morte nom existe, lateja permanentemente oculta no terreno do tabu. Daí que o corvo, no conjunto do ranking de rechaços da contemporaneidade, ocupe os primeiros postos. Nom sempre foi assim, desde que a morte, com todo o que tem de traumático e terrível, foi percebida por muitas sociedades como parte da vida. E os animais considerados como mediadores entre o aquém e o além (o coiote e o corvo, como nos lembra Lévi-Strauss) mereciam veneraçom. Assim, por umha parte a nossa ave suscitava o terror. O paxaro que pairava sobre os campos de batalha ventando sangue e que, concluída a briga, baixava a começar o seu festim baleirando as concas oculares dos falecidos (o corvo sempre depreda primeiro as partes mais brandas). Por outra, exigia respeito. Atacar ou matar um corvo foi infracçom grave em muitas culturas. Umha viagem fugaz por algumha delas ilustra a sua relaçom com o mundo dos humanos.

Da Grécia à Escandinávia, passando pola Céltia

Apolo era o deus grego das profecias, e o corvo vinculava-se estreitamente com ele. É certo que a primeira descoberta do corvo foi a infidelidade de Coronis com o deus, que, enfurecido, transformou umha ave que era branca no preto intenso, azulado, que o caracteriza para sempre. Mas nesta história há ambivalência, como a há na Bíblia. O corvo foi, com a pomba, umha das duas aves que Noé enviou desde a arca para procurar terra firme. (A pomba voltou com o ramo de oliveira, mas aonde foi o corvo?) Na antiga Roma, por seu turno, os sacerdotes lérom no corvo mensagens de esperança, por interpretarem no seu canto a palavra ‘cras-cras-cras’ (‘manhá, manhá, manhá’ em língua latina). O filósofo romano em língua grega Eliano escreveu: ‘o corvo é, ao que parece, a ave de voz mais penetrante e também a que possuía um mais copioso registo de tons, porque, se se lhe aprende, pode reproduzir a voz humana. Quando está de talante festeiro emite umha determinada voz, quando está sério, outra. E se se pom a anunciar as respostas dos deuses, a sua voz assume um tom sagro e profético.’

A ambivalência continua no norte da Europa. Pois si suecos e alemaos viam em cada umha destas aves almas de assassinados que nom foram enterrados em campo santo, ou ánimas em pena pendentes de redençom, a mitologia nórdica pujo-os em primeira linha. Nem mais nem menos que nos ombros de Odim. O deus viquingo estava adoito acompanhado por Hugin e Munin. O primeiro representa o pensamento, o segundo a memória; ambos os dous, em conjunto, som os espias da divindade no mundo dos humanos. Os antigos entendiam que o corvo, sempre ao ajejo, observa e escuita as pessoas, para dar conta dos seus assuntos no mundo superior.

Odim, adoito representado com os corvos Huguin e Munin

No mundo celta o corvo acompanha a guerra. Algumhas teorias assinalam que, como o abutre noutras culturas, correspondia ao corvo, trás aproveitar-se das preas, levar a alma do combatente ao mundo do além. Em qualquer caso, a deusa da guerra, Morrigan (na Gallaecia, Badua ou Reve) colocou um corvo no ombro do guerreiro Cu Chulainn umha vez morto. Corvo chama-se, em língua céltica, ‘Bran’, e Bran o Abençoado é precisamente o nome dumha deidade galesa que, segundo se conta, protege as Ilhas das invasons do leste umha vez morta.

O medievo afiançou a visom de ave infernal, anunciadora do malfado. Mas, como sempre, devemos fazer importantes precisons. No mundo galego-português registam-se dimensons positivas dos córvidos. No escudo de Lisboa aparecem duas destas aves a custodiarem umha nau, em referência ao translado dos restos do mártir cristao Sam Vicente, por parte do Rei Afonso Henriques, à futura capital lusa. A lenda diz que durante este translado, o santo foi escoltado por córvidos. Na tradiçom popular além Minho (nom sabemos se também no norte) ainda se diz, em referência a dous namorados, que som ‘pego e pega’. A cultura tradicional via nas cores da pega o preto da morte e o branco da vida.

A ciência ratifica a excepçom

Quem considerar os mitos a expressom da pre-racionalidade infantil da humanidade, pode ir à ciência. E neste caso, o saber da experimentaçom e das cifras confirma o que observaram os antergos: a excepcionalidade desta ave, cuja inteligência equipara-se já à de alguns primates. Em 2012, um estudo do Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de Cambridge comprovou como os corvos utilizavam pequenas pedras para extrazerem um verme mergulhado na água. A sua capacidade de raciocínio equivalia à dumha criança de poucos anos. A estudiosa Jennifer Akerman, na obra ‘O engenho dos paxaros’, confirma a sua tremenda capacidade memorística. Um corvo pode reter a cara de quem o enganhou até um mês depois de ser vítima dumha argalhada.

Pervivência na cultura

Na cultura popular contemporánea, o corvo em particular, e os córvidos em geral, semelham ser observados com a cárrega negativa que se alimentou no medievo, mas a ambiguidade persiste. Como no caso da Tripla Deusa Branca que vindicou Robert Graves, a seduçom e o espanto vam de braços dados. Para Edgar Allan Poe, no seu poema alucinatório ‘The Raven’, os olhos do corvo ‘asemelham-se a um demo que sonhasse’. E porém, a ave também é aquela que procede ‘dumha remota idade’, trazendo as capacidades de discernimento e observaçom que fascinaram os clássicos grego-latinos.

Ilustraçom do poema ‘The Raven’ de Edgar Allan Poe

E na Galiza? Pouco podemos dizer com vontade concluinte. Sabemos, isso si, que a nossa geografia está inçada de topónimos que tenhem presentes este vizinho milenário: Monte dos Corvos (em Arçua, perto do santuário do Viso), Outeiro dos Corvos (Ribeira e Dodro), Pena dos Corvos (Arteixo e Moeche). Os mais ousados associam a existência de muitas aras de adoraçom do deus Bran com a pegada toponímica do corvo: Brançá, Brandeso, Brandomês, Bram, Brántega, todos eles nomes de lugares, seriam as pegadas da divindade e o seu animal de referência.

Com do Corvo, em Ogrobe. Umha das muitas pegadas do animal na toponímia galega, ainda que há quem diga que neste caso se refere ao corvo marinho

Chegamos assim aos nossos tempos. Os córvidos som animais, entre esquecidos e desprezados, que sobrevivem as muitas crises ambientais desatadas polo capitalismo, e que habita os nossos montes e arrabaldos. Há sem embargo quem o lembre. Na passada década de 90, um activo grupo de independentistas e reintegracionistas ourensanos baptizavam o seu boletim como ‘Gralha’, em alusom ao cercano parente do Corvux corax. A entrada de novas geraçons militantes fazia-se baixo o sonoro nome e silueta desta ave na Galiza de finais do século XX. E já na década que andamos, em dezembro de 2011, o escritor e tradutor Alejandro Tovar fundava umha editorial dedicada ao livro em galego, Hugin e Munin. Baixo o nome dos corvos informantes do deus Odim vertiam-se ao nosso idioma clássicos da ficçom universal. Dum modo ou outro, a ave continua, milénio trás milénio, mostrando aos humanos potencial inspirador.

*Redigimos este artigo com a inestimável ajuda das e dos companheiros de durvate.wordpress.com