Nos dous primeiros artigos desta série tentámos traçar um plano geral do que poderia significar, na Galiza das duas últimas décadas, umha “cultura independentista”. Desenvolvemos neles a ideia de cultura como excelência estética e criativa dumha comunidade, reduzida por motivos de operatividade e fundamento histórico praticamente à literatura (capítulo I) e à música (capítulo II). Nesta terceira entrega pensaremos a cultura como umha cousa diferente: como conjunto de práticas e modos de relacionamento que constituem culturas políticas na difusa comunidade humana que conforma o independentismo galego.

A preponderância da esquerda no corpus ideológico do independentismo tem provocado que as organizaçons políticas e sindicais respondessem, sem quase exceçons, aos modelos clássicos do extenso e variável arco do socialismo, entendido num sentido abrangente. Sem espaço nem necessidade de entrar em casos concretos, a funçom dirigente de partidos ou correntes políticas concretas; a cessom de responsabilidades e definiçom de rumos estratégicos a comités centrais, conselhos, mesas ou direçons nacionais, etc.; a capacidade para implantar-se de maneira descentralizada por todo o território nacional; a conformaçom, mais ou menos legitimada, de vanguardas com certa autonomia para o desenvolvimento tático… som vários dos fatores que, combinados, ajudam a reconstruir os diferentes modelos organizativos desenvolvidos.

Mas no que di respeito ao nível de articulaçom e funcionamento da comunidade humana – é a isto a que chamamos cultura política – os elementos mais importantes parecem ter sido dous. Em primeiro lugar, a distribuiçom de responsabilidades e tarefas no interior de cada organizaçom, tanto no que di respeito aos trabalhos propriamente intelectuais quanto àqueles ligados às tarefas burocráticas, organizativas ou que exigem esforço físico. Embora a assembleia como ferramenta para a tomada de decisons costume ter umha importância significativa neste espaço independentista, as caraterísticas de cada cultura política parecem depender do grau de participaçom real, reconhecível e reconhecida das pessoas que a conformam, e da maneira de lidar (ou integrar, ou mesmo promover) lideranças, protagonismos e representatividades de pessoas concretas.

Em segundo lugar, devemos observar os modelos de militância aplicados em cada caso que, dentro dumha certa variabilidade, poderíamos situar entre dous pólos. Por um lado, as militâncias com códigos de funcionamento mais claros, definidos e orientados, em que som centrais os conceitos de compromisso e fidelidade (ideológica, mas também orgânica e, quase sempre, moral) e em que se fundem militância e vida. No outro estremo, um modelo que, sem descurar necessariamente os padrons de coesom interna e de projeçom pública, tende a flexibilizar os critérios de agregaçom ideológica e de participaçom política e, no funcionamento intra-grupal, preocupa-se por incorporar os “cuidados” às suas dinâmicas de trabalho, parecendo conceder neste caso às pessoas militantes, nalgumha medida, o direito de diferenciar entre militância política e vida social e de reorganiza-las segundo as suas necessidades (familiares, de saúde, emocionais, etc.).

Se bem que nom nos custa demasiado ligar o funcionamento de partidos e sindicatos, enquanto formas históricas de organizaçom política, com os vários elementos, modelos e pólos agora referidos, à hora de focar o independentismo contemporâneo devemos levar em conta outros fatores que singularizam a sua experiência em termos históricos. Estou a pensar, primeiramente, no desenvolvimento do feminismo e na aparente importância atingida no interior da cultura independentista. Seria percetível tanto nos planos ideológico e discursivo – que provocou, em boa parte dos programas, a nivelaçom hierárquica entre as reivindicaçons de género, de classe e nacional – quanto no funcionamento das organizaçons. Podemos detetar umha progressiva atençom, ainda insuficiente e com frequência desrespeitada, aos direitos das mulheres, à necessidade de lutar também internamente por umha igualdade real e, em geral, ao extenso âmbito dos cuidados antes referido. Em termos propriamente culturais, a engrenagem real e eficaz da experiência histórica das mulheres e do feminismo com as experiências históricas da classe operária e da singularidade nacional constitue, com certeza, um dos grandes desafios do independentismo na atualidade.

Finalmente, é imprescindível ressaltar a emergência e consolidaçom dos centros sociais nas duas últimas décadas. Do pioneiro Artábria em Ferrol até o recente Quilombo em Ponte Vedra, a proliferaçom dos centros sociais de afinidade independentista é, sem dúvida, o elemento que com mais clareza conseguiu estruturar sociabilidades e padrons de açom cultural de espetro mais abrangente que os oferecidos polas organizaçons políticas clássicas. Dados os seus objetivos e dada a sua lógica de funcionamento, nalgum sentido análoga e herdeira da cultura associativista, os centros sociais tendem a funcionar com predomínio de processos horizontais e assembleares, alheios a carismas e representatividades na sua imagem externa, som idealmente cooperativos quanto à distribuiçom de trabalhos e responsabilidades e parecem sustentar-se num modelo de militância mais inclusivo e heterogéneo, que se bem consegue integrar diferentes interesses e experiências culturais, renuncia implicitamente a umha orientaçom estratégica forte, sobretodo no plano ideológico. Assistiríamos, portanto, a um enfraquecimento do independentismo como movimento político frente ao seu reforço considerável enquanto movimento social.

A diferença das estruturas partidárias independentistas dos últimos vinte anos, que pola sua extrema fraqueza e marginalidade no campo político e no campo de produçom ideológico quase só tenhem tentado intervir socialmente no plano simbólico, a atividade continuada dos centros sociais permitiu a sua consolidaçom como verdadeira fábrica de ideias que alarga e diversifica a composiçom do movimento, dentro duns limites ainda restritos. Deste trabalho de planificaçom para travar a assimilaçom cultural, continuar e rever criticamente a tradiçom própria e, com maior ou menor intensidade, tentar enfrentar o capitalismo, falaremos com mais vagar no capítulo IV desta série. Nele analisaremos os porquês e os modos do trabalho de base que leva tempo a pensar sobre língua, literatura, música ou danças, sobre modelos educativos e formaçom informal, sobre lazer, desportos ou tempos livres, para nutrir e tentar constituir umha cultura popular independentista para o século XXI.