As extremas direitas mais explícitas voltam aos parlamentos europeus. Num artigo da passada semana analisávamos o alcanço da reorganizaçom ultra, que tem versons institucionais e de massas. Restam ainda importantes perguntas sem responder: só é fascismo aquele que se reivindica herdeiro das ditaduras direitistas do século XX ? E além disso: dam-se condiçons na sociedade para abrolharem os brotes de ódio que levárom a alguns dos piores momentos da história recente ? Tentemos responder estas perguntas.

A palavra ‘fascismo’ converteu-se num insulto, e por isso a sua utilizaçom política rigorosa virou difícil. No uso popular equivale a ‘autoritário’, ‘violento’, ‘impositivo’. Os pensadores mais cuidadosos já notárom esta imprecisom. George Orwell dizia em 1944 : ‘a palavra ‘fascismo’ perdeu quase todo significado. Na conversa, obviamente, é utilizada com mais desleixo que em letra impresa. Vim como se aplicava a labregos, comerciantes, à puniçom física, à caça do raposo, aos touros, ao Komitern de 1922, ao Komitern de 1942, a Kipling, a Gandhi, a Chiang Kai-Shek, homossexualidade (…) e quem sabe a que mais.’

Que se utilize mal nom significa que o termo nom sirva para denominar umha realidade. Realidade que, apesar de o liberalismo se empenhar em negá-lo, tem a ver com a divisom da sociedade em classes e com as propostas mais violentas de acumular o poder e os recursos em pouquíssimas maos. As suas primeiras vítimas fôrom os trabalhadores organizados no movimento obreiro, e por isso o socialismo e o comunismo acometêrom com muita diligência o esclarecimento do fenómeno: o Komitern definiu-no em 1923. Clara Zetkin apontou : ‘será mais doado derrotar o fascismo se distinguimos às claras a sua natureza’. E pola primeira vez na literatura política, apontou que desta volta a direita dura nom chegava simplesmente como imposiçom das elites, senom como fenómeno de massas : ‘os líderes fascistas nom som umha pequena e exclusiva casta : eles extendem-se a fundo em amplos elementos da populaçom.’ Na década de 30, o movimento comunista internacional via o fascismo como ameaça terrível que cumpria enfrentar com amplas alianças. O dirigente búlgaro perfilava esta definiçom para justificar as frentes populares : ‘o fascismo é a ditadura aberta, terrorista, dos elementos mais reaccionários, chovinistas e imperialistas do capital financeiro.’ Claro que as cousas nom foram tam singelas. Estaline pactuou temporalmente com os nazis e, no extremo contrário, a esquerda comunista (representada entre outros por Amadeo Bordiga) denunciou como errónea a aliança de classes no frentismo; mas ao cabo, uns anos depois, todas as correntes do movimento obreiro tivérom que enfrentar um inimigo que procurava a eliminaçom física do marxista e do anarquista. Na década de 30 a Europa estava influenciada por um grande movimento obreiro que cumpria desarticular a toda custa, incluso violentamente.

Os limbos do direito

No passado mês de julho, o governo francês justificava a detençom de 175 pessoas. Nom cometeram nenhum delito, polo que se aplicou um protocolo de ‘arresto preventivo’. Eram membros dos coletes amarelos que passárom dous dias no calabouço por estarem a argalhar, dacordo com as autoridades ‘umha rebeliom e protesto nom autorizado.’ Desde 2015, com o pretexto dos ataques islamistas, a polícia tem poderes extraordinários na França, e o Estado reconhece os movimentos populares ‘um factor de crise’. Cumpre actuar, diz-se num informe governamental recentemente extractado no blogue el territorio del lince, ‘contra forças subversivas que visam a destruçom das democracias’. França e outros Estados occidentais reconhecem a ‘antecipaçom, análise monitorizaçom dos movimentos sociais’ por parte dos serviços de inteligência. Como é sabido, no Reino de Espanha umha lei de partidos permite ilegalizar forças contrárias ao ordenamento jurídico, e o delito de opiniom impede expressar ideias dissidentes em matéria de apoio a presos e análises sobre a violência política. Se em nome do rigor nom queremos falar de fascismo, si devêssemos apontar à fascistizaçom, e considerá-la como um risco actual. Desde a popularizaçom do modelo Guantánamo-espaço sem direitos no interior do território dum Estado de Direito- os limbos legais extendêrom-se para imigrantes, dissidentes, presos e presas. O modelo securitário que historicamente defendeu a extrema direita é hoje o da maioria absoluta do arco parlamentar: perseguiçom legal e alegal da esquerda rupturista, aplicaçom genérica do anti-terrorismo e limitaçom severa da liberdade de movimento e de expressom.

Na realidade, nom é nada novo. Foi Carl Schmitt, o reputado jurista dum Estado liberal, o que na Alemanha dos anos 30 proclamou que soberano é ‘quem proclama o Estado de excepçom’. Era a formulaçom perfeita para liberais assustados, intelectuais e grandes empresários, que virárom fascistas, ou quanto menos tolerantes com o fascismo. O grande seguidor galego-espanhol de Schmitt, Manuel Fraga, propugnou umha e outra vez que por trás da alternáncia de partidos, a liberdade de imprensa e o exercício dos direitos de manifestaçom e reuniom devia fixar-se umha engrenagem estatal férrea com resortes omnipotentes. Dito por outras palavras, qualquer restriçom de direitos e liberdades está contemplada se os planos essenciais do poder perigam. É por isso que, a diferença das direitas de raiz genuinamente liberal da Europa ou Norteamérica, as direitas fascistizadas que tanto prosperárom em Espanha desconfiam da sociedade civil e da limpa controvérsia, entendem a dialéctica política em termos de amigo e inimigo. ‘Todo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado’, escrevera Mussolini, citado hoje alegremente por Matteo Salvini.

Manuel Fraga com Carl Schmitt, o grande teórico do “estado de excepçom”

Massas, ódio, histéria

A diferença de outros projectos de tirania, o fascismo contou e conta com o concurso aberto dumha parte da populaçom, e eis o seu elemento mais moderno. Inventou os desfiles massivos, a posta em cena com parafernálias grotescas, a linguagem apelativa e simplificada baseada em estereótipos do mal e do bem. O seu modelo, caricatura do militante obreiro estoico e virtuoso, era masculino, antiintelectual, juvenil e devoto da acçom. Logo, a fusom entre burocracia estatal moderna e paramilitarismo de massas -entre administrativos eficientes e indivíduos desbocados pola febre ideológica- fijo o resto. Foi este cóctel peculiar o que permitiu alguns dos genocídios do passado século, entre eles o de 1936.

Para engrossar as fileiras dos perpretadores, precisou dumha cidadania empobrecida (parte da classe obreira, classes médias minguadas e lumpem), dominada polos sentimentos de medo, inveja e resentimento. Carrascos, matons, espions e delatores vinham de todos os estratos. É precisamente esta mobilidade social descendente a que emparenta os tempos actuais, no nosso contorno muito menos violentos, com os afastados anos 30. O empobrecimento cria um novo quadro ideológico. O jornal liberal ‘La Vanguardia’ escrevia há uns dias : ‘na última década vimos um crescente número de cidadaos occidentais a questionarem os valores da orde liberal. Esse processo de perda de fe nos valores centrais do liberalismo dentro de Occidente constitui quiçá a ameaça mais estrutural à arquitectura institucional construída desde o fim da II Grande Guerra.

Um só paralelismo nom justifica que equiparemos tempos tam distantes. Porém, e como aponta Umberto Eco, há umha espécie de ‘fascismo eterno’ com características fixas; e de popularizar-se um só desses elementos, devêssemos aumentar a atençom e a alerta. Um dos esquemas de razoamento preferidos do pensamento simples dos fascistas é o complot. A direita espanhola, fascista ou nom, leva-o cultivando duas décadas, desde que propagou fantasiosas afinidades entre PSOE, independentismo basco, todo tipo de dissidência social e nacional, e mais recentemente, o feminismo ou a ‘mao russa’ na Catalunha. Com a eclosom do soberanismo catalám, o pensamento fascistizado propagou outra das peças da sua lógica: o inimigo interno que zuga das instituiçons e, de maneira traiçoeira, conspira para romper o Estado e a unidade nacional. ‘O inimigo fascista é paradoxal’, escreve Eco, pois ‘ao mesmo tempo que é demasiado fraco, é demasiado poderoso’. Fraco, porque se agocha, nom dá a cara, refuga a luita aberta e baril que demandam os fascistas, e nom será adversário para o Estado-naçom; poderoso, porque se infiltra, domina resortes ocultos e nunca detém as suas insídias. Os cataláns secessionistas som cúrsis, ricos, demagogos, vitimistas, aliam-se com forças estranhas, e propiciam o caos (o fim do convívio constitucional, a guerra étnica). Cobiçosos, fam da cessom generosa (a Espanha estatutária) um motivo para demandas abusivas e inacabáveis.

A personalidade autoritária

Simone Weil observara a devoçom do débil polo forte como mecanismo compensatório pois, a falta de força real, ‘o oprimido obtém nesta identificaçom umha força imaginária.’ A identificaçom com o império, com o caudel, com o caucásico, com o pai firme, respondem ao modelo. O galego raivosamente espanholista que se indigna com a dita ‘imposiçom da língua’ representa também esta conduta, que nom é mais do que um dos traços da personalidade autoritária. Apavorado pola simpatia massiva que ganhara o nazi-fascismo, Teodor Adorno mergulhou nesta estrutura de carácter. Pretendia conhecer como o transfundo antisemita, mais frequente do que pensamos, pode mutar em novos ódios e fóbias. De se normalizarem certos talantes, achaiariam-se o caminho para outros dramas, sugeriu o alemao, enxergando mesmo com preocupaçom a sociedade norteamericana de posguerra. ‘A personalidade autoritária tem umha considerável carga de hostilidade que, nom podendo atirar-se sobre as causas directas que a produzem, encontra saída em outros objectivos, aptos a produzir justificaçons razoáveis, sem temor a retorquiçons’, diz um estudo sobre Adorno. A agressividade soi extender-se em ambientes de desencantamento, perda de convicçons e cinismo generalizado, que som hoje frequentes na Europa. No seu extremo, vivencia-se ‘umha hostilidade difusa, um desprezo por todo o que é humano (…) Neste pessimismo universal descobriu-se a necessidade de achar justificativas posteriores à própria hostilidade.’ E frente à possibilidade de profundizarmos pessoal ou colectivamente nas razons do sofrimento, para superá-lo, a personalidade autoritária reage com desdém e interpreta a dimensom intelectual como sintoma de vacilaçom, fraqueza, femineidade e ensonhaçom : ‘oposiçom a todo quanto é subjectivo, imaginativo, delicado. Os autoritários procuram responder aos factos tangíveis (…) e nom ouvir sentimentos nem fantasias. É possível que na raiz de tudo isso se encontre o medo da introspecçom, dominado pola falta de solidez interna.’

O problema às portas

Qualquer pessoa minimamente atenta ao tom das conversas na rua, nos bares ou nas redes sociais achará aqui mais dumha referência familiar. Sobre muitas das reacçons suscitadas contra a língua galega, contra a acolhida de refugiadas, ou contra a pretensom de soberania catalá, pairam esquemas argumentais e estados emocionais que a Europa e o mundo conhecêrom já há oito décadas. O pensamento crítico detectou com agudeza o problema. Para além dos livros e das letras, a responsabilidade recai agora nos movimentos populares, que som quem com entrega diária fam possível o avanço da consciência. Só a sua acçom eficaz e contundente pode pôr um muro ante um problema que medra.