Este artigo tentará dar conta de um fenômeno emergente no espaço das relaçons políticas: a “guerra mundial cibernética”. Primeiro, definirei os termos que utilizarei ao longo do texto. Em seguida, aplicarei os ditos conceitos ao contexto do fenômeno apontado e, depois, tentarei fazer umha interpretaçom original do mesmo, para concluir com um olhar prospectivo sobre sua possível transformaçom em “guerra civil cibernética”.

1. Rumo à Guerra Mundial Cibernética

Para fazer e mover cousas necessita-se de energia. A revoluçom industrial multiplicou exponencialmente a energia à disposiçom da sociedade humana por meio de máquinas de todo tipo. No entanto, essas máquinas necessitavam de supervisom e controle humanos para cumprir seus fins. Há três tipos ideais de máquinas: as que transformam um tipo de matéria em outro tipo de matéria. As que transforma energia de um tipo a outro. E as máquinas que transformam informaçom. É com essas últimas que se ocupa a “cibernética”. Nesse sentido, a Internet pode ser concebida como umha imensa máquina cibernética que se estendeu por todo o comprimento e largura do planeta com o potencial de colocar em Comum todos os seres humanos em tempo real (trata-se do embriom dumha sociedade global).

Agora mesmo está sendo desenvolvido o próximo salto evolutivo: a Internet das cousas (IoT, na sigla em inglês) que, como se pode inferir polo nome, permitirá conectar todas as cousas umhas com as outras e com os humanos. Isso implica que as cousas, em breve, terám, como as máquinas cibernéticas de hoje, algum grau de “inteligência” – que, para algumas funçons específicas, será igual ou superior à humana (por exemplo: captar, registrar e transmitir informaçons).

Dessa forma, surge diante dos nossos olhos o que Karl Marx antecipou com o termo “cérebro social”: Desde os tempos remotos, cousas e humanos constituíram um sistema único, a sociedade humana, formando um só objeto sócio-técnico, o Ator-Rede, no sentido de Bruno Latour & Michael Callon (1), onde os atores colocavam aos desejos e a inteligência; e as cousas, a energia e a matéria transformada. No entanto, eles nom se “falavam” uns com os outros. Mas agora umha disrupçom silenciosa iniciou quando as cousas começaram a adquirir diversos graus de “inteligência”.

Essa disrupçom foi antecipada por Marx no célebre Fragmento sobre as máquinas (1857):

A acumulaçom do conhecimento e as habilidades das forças produtivas gerais do cérebro social, [som] absorvidas assim, dentro do capital.

No fragmento citado (Caderno VI-VII do Grundrisse), o filósofo alemám antecipou, sob a denominaçom de “intelecto geral” ou “cérebro social”, o processo polo qual o capital vai subsumindo, como um vampiro, os conhecimentos e as habilidades extraídos dos trabalhadores. Tal extraçom (2), na forma de luita de classes, moldou a história do real, ou seja: “o material transposto e traduzido no cérebro humano” (3). A concepçom marxista de cérebro, como ser genérico ou social, permite-nos derivar umha teoria do conhecimento (epistemologia) da teoria do valor: o cérebro é social (4). Hoje em dia, essa realidade chama-se “virtual” ou, também, Big Data. Embora o correto seria denominá-la de realidade criptografada (5).

A privatizaçom do Big Data ou cérebro social é o que explica as estrelas midiáticas do Vale do Silício dominarem o mundo. Nas palavras de Slavoj Žižek (2012):

Como Bill Gates se converteu no homem mais rico dos Estados Unidos? A sua riqueza nom tem nada a ver com a produçom de um bom software pola Microsoft a preços mais baixos que os seus concorrentes, tampouco devido ao “aproveitamento” dos seus trabalhadores mais talentosos (a Microsoft paga-lhes aos seus trabalhadores intelectuais um salário relativamente alto). Milhons de pessoas seguem comprando o software de Microsoft porque ele nos foi imposto como norma quase universal, praticamente monopolizárom a área, realizando o que Marx chamou de “intelecto geral”, referindo-se ao conhecimento coletivo em todas suas formas, desde a ciência até conhecimentos práticos. Bill Gates privatizou parte do intelecto geral e ficou rico apropriando-se dessa renda que veio em seguida.

Quando tal privatizaçom chegar às suas etapas finais, o capital necessitará de pouquíssima quantidade de trabalho vivo para sua reproduçom. Até alá, se nom houver intervençom do Estado, o risco será que a maioria dos trabalhadores sejam jogados ao inferno do desemprego e da precariedade. No entanto, ao fazer isso, o capital estará minando o seu próprio terreno — a mais-valia — já que ela somente pode ser criada polo trabalho vivo. Nas palavras de Marx (1980, p.222):

O capital trabalha, assim, a favor de sua própria dissoluçom como forma dominante da produçom.

Mais recentemente, Stephen Hawking (2015), o famoso astrofísico britânico, chamava à nossa atençom para o mesmo fenômeno:

Se as máquinas produzem tudo o que necessitamos, o resultado dependerá de como se distribuem as cousas que as máquinas produzem. Todo o mundo poderá desfrutar dumha vida ociosa se a riqueza produzida polas máquinas for compartilhada; ou a maioria das pessoas pode acabar sendo miseravelmente pobre, se os proprietários das máquinas figerem pressom política exitosa contra a redistribuiçom da riqueza. Até agora, a tendência parece ser a segunda opçom, com a tecnologia provocando crescente desigualdade.

Se a previsom de Hawking tornar-se realidade, chegaremos a umha situaçom em que o todos os produtos serám produzidos, praticamente, só por máquinas e, talvez, por umha ínfima quantidade de trabalho vivo. Mas:

Isso nom é, em certo sentido, muito similar àquele processo, apontado por Marx, do crescimento da composiçom orgânica do capital, que deveria levar a eutanásia do capitalismo (para usar um termo de Keynes numha estrutura marxista)? (Milanovic, 2015).

Segundo Bruno Milanovic, antigo economista-chefe do Banco Mundial, em Marx a suposiçom é de que o processo de valorizaçom implica na intensificaçom do capital, relativa ao trabalho vivo. Desse modo, os capitalistas tendem a acumular cada vez mais capital e a eliminar mais tempo de trabalho vivo por unidade de produto. Isso, numha estrutura marxista, significa cada vez menos necessidade de horas de trabalho assalariado que, obviamente, geram cada vez menos a mais-valia: e essa mais-valia minguante, em relaçom a umha crescente acumulaçom de capital, significa umha queda na taxa de lucro, até o limite de zero.

Como a robotizaçom afetará o capitalismo? Karl Marx dá-nos algumhas pistas. Como escreveu, cada capitalista individualmente está constrito por leis de ferro do mercado para investir em processos mais intensivos do capital, para ser mais competitivo que os outros capitalistas. Mas quando todos fazem o mesmo (apesar das contra-tendências), a taxa de lucro cai para todos. Por isso, a longo prazo o que fam os capitalistas, no final das contas, é “sair do negócio”, ou, mais precisamente, avançar para umha taxa zero de lucro.

Em qualquer caso, o trabalho vivo será substituído por máquinas, num grau tam extremo que o grosso da produçom será realizada por robôs. O emprego será insignificante. Em Marx, o último desequilíbrio político – ou crise terminal – daria-se entre um enorme “exército de reserva de desempregados” e umha pequena camada de capitalistas e assalariados de sucesso. Para visualizar esse desequilíbrio, Milanovic (2015) convida-nos a que

Imaginemos milhares de robôs trabalhando numha grande fábrica e um só trabalhador controlando-os, sendo que os robôs só têm vida útil de um ano: isso significa que há que substituir, continuamente, os robôs, ou seja, enormes custos anuais de reposiçom e reinvestimento. A composiçom do PIB seria muito interessante. Se o PIB total é de 100, poderíamos ter umha consumo = 5, um investimento líquido = 5 e umha reposiçom = 90. Viveríamos num país com um PIB per capita de 500 mil dólares, mas 450 mil dólares seriam para reposiçom.

Suponhamos, agora, que as máquinas passem a ser propriedade dos perdedores do sistema, depois dumha Guerra Civil Cibernética, similar a recriada em V de Vingança. Teríamos, entom, as mesmas fábricas imensas cheias de robôs, mas todo o produto líquido seria apropriado polos excluídos, que usariam essa renda para ter umha vida de muito ócio, com jornadas de trabalho reduzidas — ou, inclusive, nengumha — olhando telas ou jogando divertidos jogos nos seus telefones. Desse modo, a guerra civil cibernética seria umha deslocada luita de classes.

Porém, qual seria a ideologia dos novos ciberproletarios? Talvez um rejuvenescido “fetichismo digitalizado” ou o “reino da liberdade”, segundo teorizou Marx? Nas palavras de Ricardo Sanín (2016, p.116):

As maravilhosas máquinas de alta tecnologia e comunicaçom estám programadas em linguagens altamente sofisticadas e em ambientes extremamente elitistas, que servem ao poder para estender o domínio do capital da melhor maneira possível. Apesar de estarmos irremediavelmente conectados a umha rede que sempre amplia a informaçom, como se fosse o Intelecto Geral, a imagem cultural da máquina permanece criptografada: os seus fluxos e comandos seguem dependendo da fame do mercado, e o seu principal intelecto segue sendo material escasso. Por isso, a informaçom só pode tornar-se democrática quando a máquina – em um ponto de absorviçom do conhecimento ao poder – se decriptar e se liberar politicamente.

“Máquinas maravilhosas” que embora englobem umha grande promessa de emancipaçom, também continuam replicando os seus “fluxos e comandos” às mesmas mesquinhezes morais: racismo, sexismo, imperialismo, capitalismo, da matriz política que lhe deu vida: o Colonialismo Globalizado.

Som os grandes e perturbadores enigmas que nos trazem a realidade criptografada e o seu colonialismo globalizado.

2. umha via digital ao comunismo

Até agora as sociedades ciberneticamente mais desenvolvidas do mundo: Estônia, Singapura e Israel, som:

1-Demograficamente pequenas e politicamente homogêneas;

2-Possuidoras de Estados policiais muito fortes; e

3-A educaçom elitista é umha prioridade para o Estado e a sociedade.

Por outro lado, trata-se de sociedades que, curiosamente, estám muito distantes da Califórnia: já se desmonta esse mito idiota de que “tudo se inventa no Vale do Silício” (6).

Mas agora estamos diante dum ponto de fuga. Numha nova reviravolta da atual Guerra Mundial Cibernética (uma reediçom, em formato digital, da Guerra Fria entre Leste e Oeste), Vladímir Putin anunciou, no começo de junho de 2017, no Fórum Internacional Econômico de Sam Petersburgo, um programa político qualitativamente novo que, a julgar polos discursos, se apoiará na plena “digitalizaçom” da sociedade e da economia russas, que eles pensam em extrair de suas formidáveis “escolas de matemáticos e físicos”. Naquele fórum, Putin e seus ministros anunciárom umha aliança com o Ethereum para um sistema descentralizado de serviços de Internet, baseado na tecnologia blockchain – tecnologia que está na base das criptomoedas, formada por nós interconectados de informaçom criptografada e distribuída por todo o mundo e que funcionam como base de dados e cópias de segurança. Segundo informaçons do Kremlin, o presidente Putin encontrou-se com o fundador de Ethereum, Vitálik Buterin, um programador de 23 anos, nascido na Rússia numha família que emigrou para o Canadá. Putin apoiou as ideias de Buterin e propôs estabelecer contatos de trabalho com potenciais sócios russos. Segunda umha nota do El País sobre o encontro:

Putin está “totalmente apaixonado” pola digitalizaçom da economia e polas novas tecnologias, segundo o vice-primeiro ministro, Igor Shuválov. Disse que o presidente reuniu um pequeno grupo de funcionários da administraçom e do governo para debater esses temas e só os “deixou sair” depois da “umha da madrugada”. Em Sam Peterbrurgo, Putin esboçou as linhas básicas do programa de digitalizaçom que o governo elaborou ao seu pedido. Entre as metas, está a “alfabetizaçom digital geral” com “programas de ensino para pessoas das mais diversas idades” e umha base “normativa nova e ágil para introduzir tecnologias digitais em todos os campos”, tendo em conta “a segurança informática do Estado, dos negócios e dos cidadaos”. Putin anunciou açons “para incrementar a nossa superioridade intelectual, tecnológica e de quadros no campos da economia digital”.

Na sua opiniom, as “excelentes escolas no campo da matemática e na física teórica” permitem à Rússia “conseguir a liderança em diferentes direçons da denominada nova economia, sobretudo digital”. A economia digital nom é apenas mais um ramo, mas “a base que permite criar um novo modelo qualitativo de negócios, comércio, logística, produçom, que altera o formato da educaçom, da saúde, da direçom do Estado, da comunicaçom entre as pessoas, e em consequência cria um novo paradigma de desenvolvimento do Estado, da economia e de toda a sociedade”, argumentou Putin (Bonet, 2017).

Essa estratégia de Putin, nom envolve a possibilidade de que nos encontremos às portas daquilo que Alain Badiou formulou como o “Acontecimento”: umha intervençom do que nom pode ser explicado em funçom de suas “condiçons objetivas” preexistentes? Com a tecnologia blockchain em cena, a riqueza das sociedades nom só está se transformando dumha “imensa acumulaçom de mercadorias” (Marx) para umha imensa sinapse planetária, como também , devido a sua revolucionária estrutura matemática (7), poderia alterar as geometrias tradicionais do poder global.

Entom, o que aconteceria se num futuro próximo Rússia, China e Índia copiassem com sucesso a digitalizaçom da Estônia, de Singapura e de Israel? Claramente, trata-se dumha intensificaçom da Guerra Mundial Cibernética contra as potência ocidentais. No entanto, ao ser todos eles estados policiais e capitalistas – com suas opacas e corruptas oligarquias bem instaladas nos postos de comando da economia e da administraçom – o desafio dos hacktivistas – tanto do Leste quanto do Oeste, tanto do Norte quanto do Sul – será transformar essa Guerra Mundial Cibernética em Guerra Civil Cibernética, socializando as bases de dados (8), ou seja, descriptografando o Big Data e toda a potência da sua inteligência artificial coletiva para, assim, liberá-los de seus atuais “sequestradores” – tanto estatais (Estados Unidos, Uniom Europeia, Rússia, China etc.) como privados (Google, Facebook, Netflix, Microsoft, Apple etc.).

Notas

(1) Ver Michael Callon, (2001).

(2) Para umha concepçom alternativa e nom eurocêntrica (como a de Marx) do “extrativismo” e da tecnologia em geral, ver Ramón Grosfoguel (2016).

(3) Ver Karl Marx, El Capital, Vol. 1, Epilogo a 2ª Ed. Alemana.

(4) Ver Guglielmo Carchedi (2014).

(5) Ver Gabriel Méndez e Ricardo Sanín (2012).

(6) Curiosamente, o antecedente do Big Data como umha tecnologia política emancipadora se encontra nos anos 1970 e em um país do sul global, ver Eden Medina (2013).

(7) Cfr.: http://www.bitcoin.org/bitcoin.pdf Satoshi Nakamoto – The Cryptography.

(8) Ver Evgeny Morozov (2015)

Publicado originalmente em outraspalavras.net e adaptado polo Galizalivre.