Frente à tendência fraccionalista e posmoderna que o capitalismo fai passar por progressista nas relaçons humanas recuperamos textos do psicólogo, filósofo e sociólogo marxista Erich Fromm.

O humano é dotado de razom; é a vida consciente de si mesma; tem, consciência de si, dos seus semelhantes, do seu passado e das possibilidades de seu futuro. Essa consciência de si mesmo como entidade separada, a consciência de seu próprio e curto período de vida, do facto de ter nascido sem ser por vontade própria e de ter de morrer contra a sua vontade, de ter de morrer antes daqueles que ama, ou estes antes dele, a consciência de sua solidom e separaçom, de sua impotência ante as forças da natureza e da sociedade, todo isso fai de sua existência apartada e desunida uma prisom insuportável. Ele ficaria louco se nom pudesse libertar-se de tal prisom e alcançar os homens, unir se dumha forma ou doutra com eles, com o mundo exterior.

A mais profunda necessidade do humano, assim, é a necessidade de superar a sua separaçom, de deixar a prisom em que está só. A falência absoluta em alcançar esse alvo significa tolémia, porque o pânico do isolamento completo só pode ser ultrapassado por um afastamento do mundo exterior de tal modo radical que o sentimento da separaçom desapareça — porque o mundo exterior, de que se está separado, também desapareceu. O humano — de todas as idades e culturas — vê-se diante da soluçom de umha só e mesma questom: a de como superar a separaçom, a de como realizar a uniom, a de como transcender a própria vida individual e encontrar sintonia.

Um meio de alcançar esse objetivo está em todas as espécies de estados orgíacos. Podem ter eles a forma de um transe auto-provocado, às vezes com a ajuda de drogas. Muitos ritos de tribos primitivas oferecem vivo quadro desse tipo de soluçom. Num estado transitório de exaltaçom, o mundo externo desaparece, e, com ele, o sentimento de estar dele separado. E como esses ritos som praticados em comum, acrescenta-se uma experiência de fusom com o grupo que dá a tal soluçom o máximo de eficiência.

Estreitamente relacionada com essa soluçom orgíaca e muitas vezes mesclada a ela está a experiência sexual. O orgasmo sexual pode produzir um estado semelhante ao produzido por um transe, ou pelos efeitos de certas drogas. Ritos de orgias sexuais comunitárias faziam parte de muitos rituais primitivos. Parece que, depois da experiência orgíaca, o homem pode continuar por algum tempo sem sofrer demais com a sua separaçom.

Vagarosamente, a tensom da ansiedade sobe, e é de novo reduzida pela realizaçom repetida do rito.

Bem diferente é o caso quando a mesma soluçom é escolhida por um indivíduo numha cultura que deixou para trás essas práticas comuns. O alcoolismo e o uso de drogas som as formas que o indivíduo escolhe numa cultura nom orgíaca. Ao tentarem fugir da separaçom pelo refúgio no álcool e nos entorpecentes, sentem-se ainda mais separados depois que termina a experiência orgíaca, e assim som levados a recorrer a ela com frequência e intensidade aumentadas.

Pouquíssimo diferente disso é o recurso a uma soluçom orgíaca sexual. Mas, em muitos indivíduos em que a separaçom nom é aliviada por outros meios, a procura do orgasmo reveste-se dumha funçom que nom a fai muito diferente do alcoolismo e do vício das drogas. Torna-se uma tentativa desesperada para fugir à ansiedade engendrada pela separaçom e resulta num sempre crescente sentimento de separaçom, visto como o ato sexual sem amor nunca lança umha ponte sobre o abismo entre dous seres humanos, senom momentaneamente.

Todas as formas de uniom orgíaca têm três características: som intensas, violentas até; ocorrem na personalidade total, no corpo e no espírito; som transitórias e periódicas. Exatamente o oposto é verdadeiro quanto àquela forma de uniom que é, em muito, a soluçom mais frequente escolhida polo humano no presente e no passado: a uniom baseada na conformidade com o grupo, os seus costumes, práticas e crenças.

A uniom com o grupo é o modo predominante de superar a separaçom. É umha uniom em que o ser individual desaparece em ampla escala, em que o alvo é pertencer ao rebanho. Se som como todos os demais, se nom tenho sentimentos ou pensamentos que me fagam diferente, se estou em conformidade com os costumes, ideias, vestes, padrons do grupo, estou salvo: salveime da terrível experiência da soidade.

É preciso haver uma resposta ao anseio de uniom e, se nom houver outro meio melhor, entom a uniom da conformidade no rebanho torna-se a predominante. Só se pode compreender a força do medo de ser diferente, do medo de estar a poucos passos fora do rebanho, quando se compreendem as profundidades da necessideade de nom ser separado.

A uniom pela conformidade nom é intensa e violenta: é calma, ditada pola rotina e, por essa mesma razom, é muitas vezes insuficiente para apaziguar a ansiedade da separaçom. Sendo assim, o conformismo de rebanho tem apenas umha vantagem: é permanente e nom espasmódico. O indivíduo é introduzido no padrom conformista com a idade de três ou quatro anos e daí por diante nunca perde o contato com o rebanho.

Vemos, assim, que a unidade conseguida na fusom orgíaca é transitória; a unidade alcançada polo conformismo é apenas pseudo-unidade. Eis porque som todas, apenas, respostas parciais ao problema da existência. A resposta completa está na realizaçom da unidade interpessoal, da fusom com outra pessoa; está no amor.

O desejo de fusom interpessoal é o mais poderoso anseio do humano. É a paixom mais fundamental, é a força que conserva juntos a raça humana, o clam, a família, a sociedade. O fracasso em realizá-la significa loucura ou destruiçom — auto-destruiçom ou destruiçom doutros. Sem amor, a humanidade nom poderia existir um só dia. Contodo, se chamarmos “amor” a realizaçom da uniom interpessoal, poderemos encontrar-nos em séria dificuldade. Para a maioria, a intimidade estabelece-se antes de todo polo contato sexual. Desde que primeiramente se experimente a separatividade da outra pessoa como separatividade física, a uniom física significa a superaçom da separaçom. O amor erótico é, pois, o anseio de fusom completa, de uniom com outra pessoa. Mas é também, talvez, a mais enganosa forma de amor que existe. Por estar o desejo sexual emparelhado na mente de muitos com a ideia de amor, som eles com facilidade levados à má conclusom de que amam um ao outro quando se querem um ao outro fisicamente. O amor pode inspirar o desejo de uniom sexual: neste caso, falta à relaçom física a avidez, a vontade de conquistar ou ser conquistado, mas mistura-se nela a ternura. Se o desejo de uniom física nom for estimulado polo amor, se o amor erótico também nom for amor fraterno, nunca levará à uniom mais do que num sentido orgíaco e transitório. A atraçom sexual cria, no momento, a ilusom de uniom, mas, sem amor, essa “uniom” deixa os estranhos tam afastados quanto antes se achavam; muitas vezes, fai com que se envergonhem um do outro, ou mesmo fai com que mutuamente se odiem, pois, partida a ilusom, sentem a sua estranheza ainda mais acentuadamente do que antes.

Já o amor amadurecido é uniom sob a condiçom de preservar a integridade própria, a própria individualidade. O amor é uma força ativa no humano; umha força que irrompe polas paredes que separam o humano dos seus semelhantes, que o une aos outros; o amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de separaçom, permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo, reter a sua integridade. No amor, ocorre o paradoxo de que dous seres sejam um e, contudo, permaneçam dous.

Por isso, o amor é uma atividade, e nom um afeto passivo; é um “erguimento” e nom uma “queda”. De modo mais geral, o caráter ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes de todo, consiste em dar, e nom em receber. Dar é a mais alta expressom da potência. No próprio ato de dar, ponho à prova minha força, minha riqueza, meu poder. Essa experiência de elevada vitalidade e potência enche-me de alegria. Provo-me como superabundante, pródigo, cheio de vida e, portanto, como alegre. Dar é mais alegre do que receber, nom por ser uma privaçom, mas porque, no ato de dar, encontra-se a expressom de minha vitalidade.

Quem é capaz de dar si é rico. Pom-se à prova como quem pode conceder de si aos outros. Que dá uma pessoa a outra? Dá de si mesma, do que tem de mais precioso, dá da sua vida. Isto nom quer necessariamente dizer que sacrifique a sua vida por outrem, mas que lhe dê daquilo que em si tem de vivo; dê-lhe da sua alegria, do seu interesse, de sua compreensom, de seu conhecimento, do seu humor, da sua tristeza — de todas as expressons e manifestaçons daquilo que vive em si. Mas, ao dar,nom pode deixar de levar algumha cousa à vida da outra pessoa, e isso que é levado à vida reflete-se de volta no doador; ao dar verdadeiramente, nom pode deixar de receber o que lhe é dado de retorno. Dar implica fazer da outra pessoa também um doador e ambos compartilham da alegria de ter trazido algo à vida. No ato de dar, algo nasce, e ambas as pessoas envolvidas som gratas pola vida que para ambas nasceu.

Com relaçom especificamente ao amor, isso significa: o amor é umha força que produz amor; impotência é a incapacidade de produzir amor. Este pensamento foi belamente expresso por Marx: “Imaginai — di ele — o humano como humano e a sua relaçom com o mundo como uma relaçom humana, e só poderedes trocar amor por amor, confiança por confiança, etc. Se quigerdes gozar a arte, deveredes ser uma pessoa de preparo artístico ; se queredes ter influência sobre outras pessoas, deveredes ser uma pessoa que tenha sobre outras pessoas influência realmente estimuladora e promotora. Cada uma de 4 vossas relaçons com o ser humano e com a natureza deve ser uma expressom definida da vossa vida real, individual, correspondente ao objeto da vossa vontade. Se amades sem atrair amor, isto é, se o vosso amor é tal que nom produz amor, se através dumha expressom de vida como pessoa amante nom fazedes de vós mesmo uma pessoa amada, entom o vosso amor é impotente, é um infortúnio.”

Aliás, crê-se que o amor é constituído pelo objeto e nom pola faculdade. Por nom se ver que o amor é uma atividade, uma força da alma, acredita-se que todo quanto é necessário encontrar é o objeto certo – e todo o mais irá depois por si. Tal atitude pode ser comparada à de alguém que queira pintar mas, em vez de aprender a arte, proclama que lhe basta esperar polo objeto certo, passando a pintá-lo belamente quando o encontrar. Mas, se verdadeiramente amo alguém, entom amo a todos, amo o mundo, amo a vida. Quase nom é necessário acentuar entom o facto de que a capacidade de dar depende do desenvolvimento do caráter da pessoa. Pressupom o alcance dumha orientaçom predominantemente produtiva; nessa orientaçom a pessoa superou a dependência, a onipotência narcisista, o desejo de explorar os outros, ou de economizar, e adquiriu fé nos seus próprios poderes humanos, coragem de confiar nas suas forças para atingir seus alvos. No mesmo grau em que faltarem essas qualidades é ela temerosa de dar-se — e, portanto, de amar. A essência do amor é, pois, “trabalhar” por alguma cousa e “fazer algumha cousa crescer”, que amor e trabalho som inseparáveis. Ama-se aquilo por que se trabalha e trabalha-se por aquilo que se ama. O amor só é possível se duas pessoas se comunicam mutuamente a partir do centro das suas existências e, portanto, se cada umha se experimenta a partir do centro da sua própria existência. Só nesta “experiência central” existe realidade humana, só aí há vivacidade, só ai está a base do amor. Assim experimentado, o amor é um desafio constante; nom é um lugar de repouso, mas é mover-se, crescer, trabalhar juntamente; haja harmonia ou conflito, alegria ou tristeza, isso é secundário em relaçom ao facto fundamental de que duas pessoas se experimentam mutuamente a partir da essência de sua existência, que som umha com a outra por serem umha consigo mesmas, em vez de fugir de si mesmas. Só há uma prova da presença do amor: a profundidade da relaçom e a vivacidade e o vigor em cada pessoa envolvida; este é o fruto polo qual o amor é reconhecido.