O passado domingo foi o domingo oleiro e o anterior, o domingo fareleiro. Hoje é o dia de comadres e a quinta feira anterior foi o de compadres. Este fim de semana é o domingo corredoiro. Logo chegaram os dias fortes: domingo de entruido, segunda e terça feira, e logo ainda virá o enterro da sardinha. Cada dia tem a sua celebraçom, com os seus rituais e os seus significados. As particularidades de cada festejo variam em funçom da aldeia e é celebrado de jeito distinto em cada lugar. Cada comunidade tem as suas tradiçons e dá-lhe mais importância a umha ou outra festividade. Nestas datas o entruido invade a geografia galega com infinidade de jogos, cerimônias, ritos, brincadeiras e festejos. Todas estas tradiçons constituem um valiosíssimo patrimônio imaterial que compre preservar. Mas dito isto, é necessário analisar as funçons pedagógicas que se podem extrair da celebraçom do entruido.

Umha festa aparentemente subversiva
O entruido é por definiçom o tempo da inversom, da ruptura das normas e do desenfreio. Umha interpretaçom superficial poderia concluir facilmente que, ao contrário do resto das que configuram o calendário tradicional, o entruido é umha festa que atenta contra todos e cada um dos princípios da ética cristá: fomenta o excesso, exacerba a sexualidade, inverte a autoridade, exalta a irresponsabilidade, promove a diversom, venera o carnal e adora o terrenal. Porém, cumpre suspeitar do carácter subversivo de qualquer rebeliom com as datas de início e de remate pré-fixadas. Com efeito, a análise antropológica revela que, através dessa inversom de valores, o carnaval foi na realidade um elemento plenamente funcional para o catolicismo, num sentido catárquico e pedagógico a um tempo: oferece um espaço e um tempo para a libertaçom controlada das tensons provocadas pola disciplina cristá, define nitidamente quais som os opostos que caracterizam este período de excepcionalidade (contribuindo para fixar, indiretamente, os valores polos que deverá reger-se a normalidade), e exacerba-os até tal ponto que, por ‘reduçom ao absurdo’, demonstra a necessidade da ordem e da mesura promulgada pola Igreja: quanto maior é o excesso, mais claro é o reconhecimento da impossibilidade dum entruido de 365 dias ao ano…

Assim o explica Marcial Gondar: “A igreja, como toda comunidade, tem também na inversom um instrumento privilegiado para constituir-fortalecer a sua própria identidade. O cristianismo tem um deus, a oposiçom ao qual é o demo, uns santos que tenhem como oposto às bruxas, uns fieis caminhando pola via estreita e dura da privaçom cara a espiritualidade, que encontram o seu negativo no homem ‘que tem por deus o seu bandulho’, que contra a ‘ascese’ pom o ‘excesso’ por regra da sua vida. Constitui-se assim em oposiçom ao ‘povo de Deus’ ou cidade celeste, um povo de Satám ou cidade térrea que conte mesmo com dous espaços distintos, a igreja e a praça, com duas atmosferas também opostas: o recolhimento intimista e a publicidade. Esta exaltaçom do próprio mediante a degradaçom do alheio pode-se levar a cabo, como já temos dito, de múltiples maneiras. Umha delas, que condensa nom apenas a palavra, mas também a força da imagem e da açom, é a representaçom teatral. Mas o teatro tem um limite: a separaçom entre o público e os atores, que faz que o espetáculo se converta em contemplaçom, isto é, em algo externo. Existe, contudo, um modo de superar esta diferença: quando fazemos coincidir espectadores e atores. Nesse momento a intensidade da vivência do representado alcança a sua quota mais alta. O carnaval é um teatro em que nom há espectadores, de ai essa reacçom de incomprensom e desgosto que se nota em qualquer vila quando um visitante quer simplesmente contemplar e nom ser objeto da brincadeira que está a ter lugar”.

Através do entruido “o Poder disfarça, emascara e mistifica os seus interesses. Com a aparência da rebeliom contra os dispositivos do Poder, o Carnaval é umha escola em que se aprende a ser mais submissos”. Por umha parte, estabelecendo um tempo para a ruptura das normas, contribui para marcar e reforçar também o tempo no que essas mesmas normas devem ser respeitadas. Por outra, forçando ao conjunto da sociedade a experimentar as consequências dumha rebeliom exagerada, a linguagem do entruido estabelece de forma indireta a necessidade e o sentido da ordem.

O seu trasladado ao lezer capitalista
Da mesma forma que acontece no entruido, tampouco a liberdade e a rebeliom que experimenta a mocidade no tempo de lezer passam de ser umha liberdade e umha rebeliom sonhadas. De facto, mudando os valores da ética cristá polos valores capitalistas, e fazendo certas adaptaçons simples, comprova-se facilmente que o funcionamento do que hoje entendemos por ‘sair’ é muito semelhante ao do entruido tradicional.

O lezer juvenil tem também um tempo e um lugar próprios (a noite, o fim de semana, os clubes noturnos) claramente dissociados do tempo e do lugar de estudo ou de trabalho, o que contribui para delimitar temporal, espacial e simbolicamente o território da excepcionalidade que se opom à normalidade, e no que é lícito inverter os valores desta.

O consumo de álcool e outras drogas como elemento central e imprescindível da festa, além de introduzir plenamente o lezer na esfera do mercado e facilitar a desinibiçom e o relacionamento social de pessoas educadas no individualismo mais selvagem, também contribui de forma evidente, através da alteraçom da percepçom e da modificaçom dos estados de consciência, para criar essa atmosfera de anormalidade, de excepcionalidade, mesmo de irrealidade: quantas vezes na manhá seguinte a ou o jovem nom se lembra do que fixo durante a noite, convertendo-se assim a sua ruptura com a normalidade nom apenas num paréntese, mas quase literalmente num sonho.

No limite das suas conotaçons carnavalescas, a gente até se disfarça para sair de noite, penteando-se, pintando a cara e vestindo-se dumha maneira diferente a como o faz durante o dia.

Como o entruido, o modelo de lezer promovido polo Poder tem a funçom purificadora a de favorecer e mesmo potenciar a libertaçom das tensons produzidas pola exploraçom e a disciplina da vida ordinária, mas sempre num espaço temporal, físico e simbólico claramente dissociado daquele no que se desenvolve a normalidade, contribuindo assim, para definir e fortalecer por oposiçom os limites, os valores e a necessidade da ordem que rege esta. Como no entruido, a estrutura funcional do lezer capitalista tem ademais a funçom pedagógica de ensinar onde, quando e como é lícito inverter as normas, e onde, quando e como estas devem ser respeitadas.

O caminho de volta
Como se mostrou, o tempo de lezer capitalista transformou-se em pequenos espaços, físicos, temporais e simbólicos, de suspensom de valores do mesmo jeito que o entruido tradicional, mas atravessado pola lógica capitalista, é dizer, polo consumo desmedido de álcool e outras drogas. Deste jeito, o lezer noturno assumiu a funçom pedagógica de acoutar, codificar e controlar os espaços e os momentos de liberdade e rebeliom, precisamente com o fim de desativar as potencialidades rebeldes e libertárias que som próprias da mocidade.

Agora, a lógica do consumo alcançou também o entruido e, do mesmo jeito que devorou outras festas tradicionais galegas, como o Sam Joam ou o Samain, transformou-o em muitos casos em macro-botelhons e carroças de Cat-woman e Spider-man embebedados, que pouco tenhem que ver com o entruido tradicional.