No Verão de 1901, Mário e Marcela, um jovem casal galego, chegava ao Porto para encetar uma nova vida; primeiro estabelecer-se-ão na pousada A Mesquita, na rua do Bonjardim e, depois, noutra da praça da Batalha. Marcela começará a trabalhar no Café Lisbonense, cujos proprietários a apreciam muito, correndo tudo bem para o casal até que um espanhol os delata à polícia: Mário, na realidade, era Elisa, uma mulher. A partir daí, os seus genitais tornar-se-ão um campo de batalha: entre o amor lésbico e o heteropatriarcado, mas também entre projectos nacionais divergentes. E a luta de Elisa e Marcela, minuciosamente reconstruída por Narcisco de Gabriel (2008) – e divulgada pelo recentemente falecido Eduardo Galeano (2012) – merece um posto de destaque na história queer de Portugal.

“O crego que che casou
devia de estar borracho
porque não che perguntou
se eras fêmea ou macho”

Cantiga popular da Ria de Arouça (Bouza-Brey, 1982)

Elisa Sánchez nasce na Corunha em 1862, cinco anos antes de Marcela Gracia. Conhecem-se na Escola Normal de Mulheres, onde Elisa trabalhava e Marcela estudava. Depressa nasce uma forte amizade entre elas, julgada como excessiva pela família de Marcela, que tenta esfriar a relação enviando a filha para Madrid. Porém, sendo já as duas professoras – uma profissão que permitia certa autonomia às mulheres – encontram-se na comarca de Bergantinhos, com Elisa à frente da escola rural de Couso e Marcela da de Traba, estabelecendo-se finalmente a primeira em Calo (Vimianço) e a segunda em Dumbria. Com independência económica e longe do controlo familiar, as duas companheiras podem fazer a sua vida. Todas as noites Elisa percorria sozinha com o seu revólver – como era costume dos moços de então – os onze quilómetros que distavam até à morada de Marcela. Mas o seu forte carácter – a vizinhança chamava-lhe ‘o Civil’, em alusão à Guarda Civil – faz com que se envolva em pelejas com os pretendentes que Marcela tinha na aldeia, e chegará mesmo a tentar suicidar-se. Com o convívio muito rareado, Elisa volta à Corunha.

Após este primeiro fracasso, traçam uma nova estratégia, muito mais audaz e arriscada, para conseguir uma vida própria: Elisa propaga a falsa notícia de que vai embarcar para Havana, enquanto Marcela diz que vai casar com um tal Mário. Já na Corunha, a primeira começa a transformação: veste roupa de homem, deixa crescer bigode, fuma… Elisa transforma-se em Mário Sánchez Loriga, um emigrante recém-chegado de Londres para casar com a sua prometida Marcela. Fazendo-se passar por protestante, tem que se batizar como católico para poder casar e vai, assim, oficializando a sua nova identidade. Em 8 de Junho de 1901, às sete e meia de manhã, o sacerdote Víctor Cortiella tornar-se-á, sem o saber, no primeiro clérigo a casar duas mulheres. Apenas a mãe de Marcela dará conta da verdadeira identidade do noivo. A cerimónia tem lugar na igreja de São Jurjo, com uns padrinhos de bodas muito respeitáveis, convite de chocolate e passeio pela Corunha.

EXÍLIO E ENCARCERAMENTO

Pouco durará a felicidade do novo casal corunhês: começa a haver dúvidas acerca do género de Mário, e isto torna-se assunto público. Na diligência a caminho de Dumbria, os vizinhos de Vimianço, onde fizeram uma paragem, deram conta de que Mário não é senão a mestra Elisa. Em Dumbria submetê-la-ão a uma chocalhada, expressão máxima de sanção moral popular (para a Galiza vid. Castro, 2007) – sobre a qual E. P. Thompson (1995: 532 e ss.) tem advertido que não se deve idealizá-la, pois muito amiúde mostra continuidade com os castigos da Igreja. Aos berros de “Que saia essa! Que saia o marimacho! Que se apresente ‘o Civil’!”, a multidão pretende examinar os genitais de Mário, que foge para o Porto. O assunto salta para as capas dos jornais, e o burguês La Voz de Galicia chama-lhe “matrimónio sem homem”.

A GREVE DA CORUNHA

Tudo isto acontecerá num contexto de excepção que pôs a cidade em estado de guerra: a greve acordada entre o forte movimento operário da cidade e o agrarismo da periferia rural. A 29 de Maio, os 140 guardas de consumos declararam-se em greve, confrontando-se com a Guarda Civil no dia a seguir, com o resultado de um morto. A 1 de Junho, o exército espanhol entra a reprimir a greve causando uma matança: dez pessoas foram assassinadas sob o fogo das carabinas máuser, incluindo três camareiras do Gran Hotel de Francia que observavam a batalha por trás das janelas. Três anos depois, as serventas e camareiras do hotel, as mesmas que enterraram as suas companheiras assassinadas, declaram-se em greve contra os patrões. O diário La Gaceta de Galicia saudou o protesto com indissimulado machismo: “A greve, pelo sexo e a ocupação das interessadas, é curiosa e talvez seja o primeiro caso que se regista no nosso país.”

A 1 de Julho, o juiz da Corunha, Pedro Calvo, emite uma ordem de busca e captura, que é recebida pelo comandante da Guarda Civil de Vigo e pela polícia portuguesa, mas não será antes de 16 de Agosto que as detêm na praça da Batalha. Após interrogar as galegas, o comissário Adriano Acácio de Moraes envia-as para a prisão do Aljube. Havia tal expectativa perante uma possível extradição que as pessoas se concentram nas estações do comboio de Valença do Minho, Tui e Corunha para as ver passar. Comparecerão perante o Tribunal no dia 21, imputando-lhes o juiz Margarido Pacheco os delitos de indocumentação, falsificação e travestismo, no caso de Elisa, e o de cumplicidade, no de Marcela.Entretanto, cá fora, organiza-se a solidariedade. O senhor Nogueira, proprietário do Café Lisbonense, oferece-se para pagar a fiança, mas as detidas são levadas para a Cadeia da Relação. Os jornais abrem subscrições populares para arrecadar dinheiro para as galegas, para as quais doarão, sobretudo, as mulheres portuenses. O Jornal de Notícias juntará 18.000 reis, O Norte 1.000, O Primeiro de Janeiro 1.500… Também no Café Lisbonense onde, aliás, recolhem roupa de luto para Elisa, cuja tia acabava de falecer em Santiago de Compostela. O fotógrafo José Rodrigues entrega-lhes 17.000 reis que obtivera de vender um retrato que lhes tirara na prisão.

Em 29 de Agosto, dão-lhes a liberdade e, segundo e crónica do Jornal de Notícias, uma multidão recebe as safos galegas na rua com um “caloroso viva às duas mulheres”. Serão detidas de novo, transladadas para o Aljube e libertadas definitivamente à tarde pela rua de Bainharia, para evitar aglomerações. Sabe-se que, por alturas dos Reis de 1902, Marcela tem uma menina e, pouco depois, partem para Buenos Aires.

ETNOGRAFIA LÉSBICA

Como em toda a Europa camponesa, na Galiza tradicional o lesbianismo esteve marcado pelo paradoxo das mulheres pa decerem e, ao mesmo tempo, beneficiarem da sua invisibilidade: o patriarcado era incapaz de conceber a possibilidade de uma sexualidade “sem homem”, sendo o imaginário sexual dominado por esta carência masculina. As próprias cantigas eróticas da lírica medieval galego-portuguesa são um exemplo disto (v. Callón, 2011), como quando Fernando Esquio oferece a uma abadessa “quatro caralhos franceses,/ e dous aa prioresa/ (…)/ quatro caralhos asnais/ enmangados en corais,/ con que calhedes a man”. Alguns tribunais da Inquisição, no mesmo sentido, não condenavam as práticas lésbicas, salvo se se demonstrasse que usavam algum instrumento fálico.

Na cultura popular, entende-se que o lesbianismo nasce da carência de homem. Ainda na Galiza de hoje se canta isso de que “A velha a falta de macho / meteu pola cona o mango do sacho”, completada com uma moral mais bem libertária: “E se fijo (fez), fijo bem, / n acona da velha não manda ninguém.” No mundo dos mouros – seres da mitologia popular galega que moram em castros e monumentos megalíticos – muitas vezes aparecem relatos de camponeses que tentam desencantar uma atractiva e perigosa moura através de práticas rituais que não são senão metáforas de desvirginamento: mijar nela, bater-lhe com um pau e fazer-lhe sangue, tirar-lhe uma flor da boca… Simbolismo que se mantém exactamente igual quando quem realiza o desencantamento é uma mulher: “a cultura popular galega não contempla o lesbianismo como possibilidade”, conclui a etnóloga Mar Llinares (1990: 147).

Mas, como assinalam Vázquez García e Moreno Mengíbar (1997:213), a hermafrodita é o “antepassado genealógico do homossexual”, e é aí que se encontram as chaves interpretativas do que sucedeu às valentes safos galegas. A cantiga que encabeça este artigo, compilada por Fermín Bouza-Brey antes da Guerra Civil espanhola, poderia fazer referência ao caso de Marcela e Elisa. Nela não se faz escárnio do impensável lesbianismo, mas da confusão de géneros, do mesmo jeito que a chocalhada de Dumbria ia só contra Elisa, ou que o juiz Margarido Pachecho apenas imputa Elisa por travestismo. As próprias crónicas da imprensa compadeciam-se de Marcela ao mesmo tempo que carregavam contra Elisa. Para além do mundus inversus do Entrudo, não há muitos casos de travestismo na cultura popular. Travestiam-se de homens as ceifeiras galegas do século XVIII que emigravam para Castilha, mas apenas porque não se permitiam mulheres, do mesmo modo que a intelectual Concepción Arenal assistia travestida às aulas da Faculdade de Direito na década de 1840, apertando os peitos com um corpete duplo. Há, porém, um interessante romance popular, cuja versão galega foi escutada por Said Armesto (1997: 145-146) em Lousame à fiadora Dolores Mato Castro, em 1902, que narra como Martuxinha se transformou em homem para participar na guerra por amor ao seu pai. Estudou-a como caso de género o antropólogo Xosé Mariño Ferro (2014).

A DISPUTA NACIONAL-PATRIARCAL

Num magnífico ensaio que está a abalar a cultura galega, a investigadora Helena Miguélez-Carballeira (2014) desconstrói a lógica sexual patriarcal em que se construíram os imaginários nacionais galego e espanhol. Através de um percurso pelas estratégias discursivas do confronto entre o projecto nacionalista espanhol e a resistência galega ao mesmo, Miguélez-Carballeira demonstra como esta disputa se deu amiúde no campo sexual: o espanholismo atacava o imaginário galego projectando a imagem dumas camponesas galegas promíscuas e pouco respeitáveis, ao mesmo tempo que o movimento nacional galego defendia a honra das suas mulheres.

AS SAIAS DOS MINHOTOS

A vestimenta atribuída a homens e mulheres varia no espaço e no tempo, de maneira que o que agora não é “próprio de homens”, pode tê-lo sido no passado e vice-versa. Em 1730, as autoridades lusas proibiram que os homens de Nabais trabalhassem com saia (Soares, 1985:267-273), prática que, ao que parece, continuou vigente mais tempo (Veiga de Oliveira et al., 1975) e, sem poder considerar-se travestismo – pois era uma peça masculina –, a sua recordação pode vir ajudar na desconstrução das actuais ideologias de género.

As diferentes recensões do caso de Elisa e Marcela na imprensa lusa, galega e espanhola, podem analisar-se a partir desta óptica, e mais em concreto no contexto do que Elias Torres Feijó (1996) chama “o perigo português”: o temor do Estado espanhol de que o estreitamento de laços entre a Galiza e Portugal pudesse impulsionar o secessionismo galego. Embora as leituras sejam múltiplas, pode-se detectar na imprensa espanhola uma corrente que aproveita para reproduzir os estereótipos coloniais sobre o povo galego, como fez o jornal madrileno La Patria (28-6-1901): “duas histéricas que na Galiza quebraram a monotonia da vida pacífica dos galegos”; ou o corunhês, embora espanholista, La Voz de Galicia (24-6-1901), que pedia a psiquiatrização das duas mulheres, como o tinha feito com inimigos políticos, ao mesmo tempo que defendia a rectitude das ‘províncias’: “consideramos que tanto Mário-Elisa como Marcela são duas doentes, cuja neuropatia não é castigada pelos Códigos, mas que têm um departamento a ocupar no manicómio de Conxo, onde quiçá não consigam ser curadas, mas sim estudadas pelo sábio Sánchez Freire e pelo menos ali reclusas evitaremos que se espalhe a sua doença, que costuma ser contagiosa pelo exemplo, e (…) que por fortuna nas nossas províncias galegas não só não abunda, senão que é raríssima.” A mesma lógica nacional-patriarcal produz leituras divergentes: enquanto galegas, a imprensa espanhola denigre Marcela e Elisa mas, enquanto espanholas, qualifica-as de caso estranho; a imprensa lusa, permite-se um tom mais relaxado porque não está em jogo a sua honra nacional.

No momento culminante, a Revista Gallega da Corunha, publicação dos sectores galeguistas, aproveita a ocasião para pôr em relevo a diferença de atitudes entre os portugueses, que socorreram as duas galegas e solicitaram o seu indulto, e a reacção intolerante da imprensa espanhola, que pedia o linchamento. Os galeguistas falarão da “lição” de cultura que deram os “bons lusitanos” e, apenas uns meses depois, o embaixador espanhol em Lisboa informará o seu ministro sobre a situação do “perigo português”, destacando a excessiva confraternidade que mostrava o jornal lisboeta O Século, “no qual se reproduzem escritos da Revista Gallega da Corunha, preconizando a ‘união-luso-galaica’ nos termos mais claros e transparentes”.

BIBLIOGRAFIA CITADA:

Bouza-Brey, F. 1982 (1931). “Cantigas populares de Arousa”. Etnografía y Folclore de Galicia, (t. 2). Vigo: Xerais.

Callón, C. 2011. Amigos e sodomitas. Configuración da homosexualidade na Idade Media. Santiago de Compostela: Sotelo Blanco.

Castro, X. 2007. “Ars amandi na vellez: a chocallada”, Historia da vida cotiá en Galicia. Séculos XIX e XX. Vigo: Nigratrea.

Gabriel, Narciso de. 2008. Elisa e Marcela. Alén dos homes. Vigo: Nigratrea.

Galeano, E. 2012. “Sacrílegas”. Los hijos de los días. Madrid: Siglo XXI.

Llinares, M. 1990. Mouros, ánimas, demonios. El imaginario popular gallego. Madrid: Akal.

Mariño Ferro, X. R. 2014. “Aquiles, Martuxiña, as amazonas e os roles de xénero”, A Trabe de Ouro nº 100.

Miguélez-Carballeira, H. 2014. Galiza, um povo sentimental? Género, política e cultura no imaginário nacional galego. Santiago de Compostela: Através Editora.

Said Armesto, V. 1997. Poesía popular gallega. Corunha: Fundación Barrié.

Soares, F. N. 1985. “Costumes e actividades das populações marítimas do concelho de Esposende”.

Actas do Colóquio “Santos Júnior” de Etnografía Marítima, T. III. Póvoa de Varzim.

Thompson, E. P. 1995. “La cencerrada” (Rough Music), Costumbres en común. Barcelona: Crítica.

Torres Feijó, E. J. 1996. A Galiza em Portugal, Portugal em Galiza através das revistas literárias (1900-1936). Tese de Doutoramento, Universidade de Santiago de Compostela.

Vázquez García, F. e A. Moreno Mengíbar. 1997. Sexo y razón. Madrid: Akal.

Veiga de Oliveira, E. et al. 1975. Actividades agro-marítimas em Portugal. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos de Etnografia.