Por Santiago Alba Rico (traduçom do galizalivre) /

O homem distingue-se dos animais por duas características fundamentais: porque tem a inteligência nas suas mãos e pés, e nom nos seus dentes, e porque se move no espaço exterior e nom no interior de sua espécie. O prazer elementar do desporto e do jogo em geral tem a ver com o desenho de figuras -com o desenho do próprio ar- através da mobilidade de corpos e do intercâmbio de enlaces redondos entre eles. A bola revela a destreza (e esquerdeza) das nossas extremidades. A bola, como a voz, como os sinais escritos, une e separa dous corpos, mas nom diz nada; apenas fala precisamente desta uniom e desta separaçom; traça e afirma o milagre da distância. Antes das rivalidades, as filiaçons e as marcas, existe a beleza inútil que as torna possíveis: a delimitaçom do campo, a felicidade euclidiana dos triângulos, o erotismo objectivo das parábolas, a comparecência dum segmento líquido entre dous corpos. A bola nom é um objeto de disputa, senom um lápis; e a rede que o mantém, quando traspassa o pau, é a revelaçom cromática da perspectiva. Que produz um jogo de futebol? Nem trigo nem ferro nem lã. Produz –largura, altura, profundidade– imagens de espaço.

Na antiguidade, os homens tinham corpo e alma, e expunham um enquanto tentavam proteger e salvar o outro. Agora tenhem corpo e imagem, que é algo assim como a sua alma por fora. Sagrado para a maioria das culturas, a “figura” sempre tornou visível o espírito, borroso dentro da carne, de modo que nom apenas Deus se materializava em certas imagens convencionais, mas também a dignidade do homem se concentra, e vulnera, à altura do rosto, onde a personalidade adquire umha forma individual insubstituível. O milagre da fotografia conseguiu nom apenas expressar permanentemente a alma, mas também reproduzi-la, pelo menos parcialmente, até o infinito, em inumeráveis cópias que acabam sendo mais verdadeiras do que o próprio original. Agora, o dólar nom é apoiado polo ouro e a figura nom é apoiada polo corpo. A alma pode revelar-se e brilhar em todos os lugares, para todos os homens por igual; pode ser violada e degradada também em todos os lugares, a de todos os homens por igual.

Uma economia imaginária é acima de tudo uma economia que manipula, multiplica, comercializa as imagens. O mercado capitalista conseguiu combinar e corromper essas duas maravilhas: compra e vende a tridimensionalidade do mundo, que é patrimônio de todos, e compra e vende as almas fotográficas, depósito da dignidade humana. O resultado é esse gram negócio que continuamos a chamar na Europa, para umha singular homonímia, desporto. Um relatório elaborado pola consultoria internacional Deloitte & Touche, Division Corporate Finance, assegura que o futebol move mais de 500 mil milhons de dólares por ano, três vezes o PIB da Argentina. De onde vem esse dinheiro? Dos direitos de televisom e dos direitos de imagem dos jogadores; isto é, do monopólio da geometria de Euclides e da multiplicaçom das almas dos atletas; da privatizaçom de largura, altura, profundidade –como dimensons do espaço– e roubo ignominioso da visibilidade humana. Algumhas empresas –clubes desportivos e firmas de marketing– apoderárom-se, por assim dizer, de todos os ocos e todas as esferas e sequestrárom todas as olhadas.

Tempo atrás vendêrom um escravo na Europa chamado Cristiano Ronaldo. Num dos seus livros, Fernando Ortiz inclui os preços dos escravos negros em 1790, conforme anunciavam os seus proprietários num jornal de Havana: umha mulher negra de 24 anos, robusta e saudável, sem manchas nem doenças, poderia custar 300 pesos; um “negro retinto, crioulo, de 16 anos, saudável e listo” 500; umha boa cozinheira, “humilde e fiel, saudável e sem defeito”, até 950. Ao Real Madrid –multinacional do desporto imaginário– o escravo Cristiano Ronaldo custou-lhe 94 milhons de euros; ou seja, 130 milhns de dólares. Era o recorde. Zidane custou 76 milhons; Kaká 66; Fig. 61; Buffon 47. Dizem que Cristiano Ronaldo joga bem ao futebol e marca muitos tantos. Eu nom sei se um tanto vale mais do que o prazer de marcá-lo e o nom menor de vê-lo marcar, mas a esse preço eu exigiria que o escravo Ronaldo marcasse pelo menos dous milhons de tantos nos próximos três anos. Agora bem, o Real Madrid nom o comprou para isso; nom comprou a inteligência dos seus pés ou o seu talento para escavar larguras impossíveis. De aí nunca poderia extrair nenhum valor agregado, nenhum ganho adicional. Comprou todas as suas posturas, todos os seus gestos, todas as suas olhadas, todas as suas carantonhas, todos os seus beijos, todos os seus prazeres, todas as suas figuras; comprou a forma do seu corpo e todas as suas apariçons públicas, com todas as cópias e reproduçons que puderem ser feitas. O Real Madrid mercou-no infinitas vezes e, portanto mercou-no mui barato. O escravo Ronaldo foi vendido infinitas vezes e para celebra-lo foi a Los Angeles e em um clube de Hollywood, em uma noite, gastou 254 mil dólares em álcool.

As outras equipas de futebol acusaram o Real Madrid de “dinamitar o mercado” e causar umha “inflaçom” no preço dos escravos. Algumas pessoas sensíveis, por sua vez, lembraram-se de todas as vidas que poderiam ser salvas com essa quantidade obscena de dinheiro. Para mim, pessoalmente, mais do que a cifra sideral desperdiçada –e que apenas existe lá onde ela se reproduz e se esgota– preocupa-me que achemos prazer nisso, que resulta tam apetecível, tam admirável, tam digna de imitaçom, a sorte do escravo. Os antigos (cuja lógica é também a dos revolucionários de todos os tempos e de todos os países) expunham os seus corpos e protegiam as suas almas; os europeus modernos, pelo contrário, protegem seus corpos por todos os meios, mesmo a expensas dos demais, e fazem todo o possível para vender as suas almas. Quem nom o consegue –mesmo a preço do saldo– é um idiota e um fracassado.