Por Jorge Cima de Vila /

Vai muitos anos um homem nascido em Ferronhos e casado em Budiám pegava no seu pote até o apeadeiro de Areas, pola ribeira abaixo. Lá, depois de aguardar polo comboio, subia-o a ele, e apanhava rumo a Ponte Vedra para fazer um peso destilando durante meses na augardente. Os de Sober, à outra beira do rio, tinham sona de augardenteiros, e é sabido que muitos deles botavam o pote à cabeça, subiam ao comboio e marchavam polo país adiante a destilarem. Este homem era natural de Ferronhos, paróquia de Sam Martinho de Anlho, Sober. Também era carpinteiro, também era labrego. Eram tempos nos que a especializaçom do trabalho, que um dia inventou um tal Taylor, dava os seus primeiros passos nas terras de ultramar. O mundo era entom para os mais e menos para os menos, para o artista ou artesao e nom para o técnico ou especialista. A gente ia e vinha dum lugar a outro sem mais necessidade de mais GPS e localizaçom que aqueles que só tinha a divina providência.

Depois daquele tempo veu um outro cheio de guerras e fome, miséria e necessidade. Há quem diz que naquele tempo passou necessidade, mas nom fome. Isso dependerá de onde colocarmos os nossos olhos no mapa do mundo. O minifúndio que hoje tanto molesta os governantes, os industriais e o mercado foi entom fonte de vida e salvaçom. O tempo que se abriu converteu os augardenteiros de Sober em estraperlistas, furtivos, escapados, carpinteiros, labregos, emigrantes…Quando as cousas se torcem sempre há um caminho, e quando o caminho o marca o poder e a barbárie…as reacçons dos mais, dos artistas, podem ser múltiplas. Contrabandear tabaco ou café no comboio, guindando os pacotes por baixo dos assentos se se achega o perigo, ir pescar ao rio à noite arriscando-se a umha bala da parelha da garda civil, meter os falangistas no poço de lavar de Budiám se te pilham a caçar e logo ir preso…Quando um caminho se fecha um outro se abre. Muitas vezes aqueles que parecem simples criminosos, bandidos, delincuentes ou estafadores a olhos da legalidade vigente…podem ser verdadeiros rebeldes a fazerem umha revoluçom silenciosa (as maiorias silenciosas agora estám na moda) contra o mundo que lhe foi imposto e a vida que lhe tocou viver.

Nós somos filhos e netos daqueles primeiros shamáns, que de augardenteiros passárom a estraperlistas sem deixar nunca de ser o que eram. Daqueles que chorárom porque pensárom que volvia a guerra quando pola vez primeira vírom a televisom e nela viam uns homens pegar-se tiros. Som as pessoas que nos trouxérom a televisom, a luz, os retretes, as duchas, os telefones…a construirem pedra a pedra um país mil vezes construído e outras tantas destruído. Agora mesmo estamos cómodos os dous, eu a escrever aqui, e tu a leres. Provavelmente nenhum dos dous nom tenhamos nem fome nem frio. É seguro que nom nos faga falta ter que ir à noite a pescar ao rio, tampouco ter que arriscar-nos a subir a um comboio para comerciar ilegalmente com café. A medida que fomos medrando fomo-nos fazendo gordos e fomos dissociando sem querer o aguardenteiro, o estraperlista, o furtivo…da fome, da necessidade, da ruína, do desamparo. Esquecemos que quiçá hoje os nossos avôs e bisavôs estariam em Calais, nalgum ponto indeterminado da Turquia, nalgumha fronteira do Báltico. Mas nós somos assim: umha nova, outra nova, mais outra. Zero memória.

*Este artigo foi adaptado à norma histórica do galego com consentimento do autor.