Por Jorge Paços /

Graças ao movimento galego, a simbologia reivindicativa autóctone ocupa mais e mais espaços na rua. Ao longo da última década, a bandeira do Reino Suevo fijo-se presente em mobilizaçons populares, centros sociais, festas ou estádios de futebol. Que sabemos realmente deste emblema? A amnésia programada do ensino espanhol apagou toda informaçom sobre ele, e mesmo as pessoas que o utilizam desconhecem a sua história. O trabalho de vários eruditos pode contribuir para superar tantas lagoas.

Logo dum certo uso no mundo das letras na etapa de pré-guerra, a bandeira do primeiro Reino da Galiza foi banida da cultura e, obviamente, do espaço público durante seis longas décadas. A sua recuperaçom liga-se ao independentismo do século XXI, que em certa medida remonta ao potenciamento da ideia de ‘Suévia’ que os velhos galeguistas procuraram.

Como tantos emblemas históricos, a nossa bandeira mais antiga é produto de interpretaçons, reelaboraçons e simplificaçons. Os detratores espanholistas falam por isso de ‘invençom’, esquecendo propositadamente que eles -como qualquer Estado-naçom- levam séculos a reinventar o seu passado. O mito nom é umha verdade, ‘mobiliza para umha verdade’.

Primeira pista nos 90.
A notícia da existência dumha bandeira sueva chegou a público leitor na década de 90. Em 1993, a Junta da Galiza reeditou um texto aparentemente inocente de Pérez Constanti: ‘Notas viejas galicianas’, de 1927. O erudito compostelano recupera naquele texto um documento esquecido de 1699. Nele, o cabido da se lucense, Juan Velo, dirige-se à Junta Geral do Reino da Galiza, reunida na Corunha, a propósito da necessidade de cobrar umha renda para soster a ofrenda do ‘santíssimo sacramento’ da catedral lucense. É nele quando recria a bandeira do Reino Suevo, descrevendo-a como um estandarte dourado, com dragom verde, leom vermelho ou púrpura, e o cálice com a hóstia consagrada. O religioso deixava assim testemunha dum símbolo que se utilizara um milénio antes.

Precisons e controvérsia.
Dadas as origens escuras da bandeira, esta acordou o interesse erudito. Estudos modernos apontárom importantes precisons. Até onde puidemos saber, a bandeira sueva começou a empregar-se massivamente na Galiza de 2005, trás a publicaçom dumha série de estudos sobre simbologia própria no Portal Galego da Língua, da autoria de José Manuel Barbosa (tais trabalhos iam ser recompilados no livro ‘Bandeiras da Galiza’, de Através Editora).

Posteriormente, Tomás Rodríguez deu a lume ‘A bandeira do Reino Suevo da Gallaecia’, na revista Agália em 2010. O estudo demonstra que aquela ediçom facsimilar da Junta dera lugar a malinterpretaçons. Qual era a fundamental? Os pensadores da atualidade ingnoraram a tese principal de Juan Velo. O cabido afirmava que trás o Concílio de Lugo, o rei suevo Teodomiro, ao consagrar a supremacia católica, situara a hóstia dentro do cálice e modificara portanto a velha ensenha sueva. A mudança nom é anedótica em termos políticos pois, segundo salienta Juan Velo, isto supom afirmar que a Galiza é ‘o primeiro reino cristao, e ainda o primeiro reino do mundo dos que militam debaixo da bandeira de Cristo com o título de reino’. A igreja do século XVII reconhecia ainda umha tradiçom institucional antiquíssima que o ensino espanhol nega hoje.

Som na verdade símbolos tam distantes? A pegada galaica.
O feito de a maior parte do movimento galego ser laico, e quase sempre alheio ao cristianismo, motiva um certo afastamento deste símbolo milenário, ou quanto menos dificulta a sua compreensom. Mas, como Tomás Rodríguez nos mostra, a Igreja católica e as suas monarquias bebêrom de tradiçons milenares que, no caso da nossa ensenha, som diafanamente galaicas. Rodríguez lembra-nos como o dragom é, na nossa cultura popular, a serpe alada, ou coca, ou tarasca, ou serpe bichoca. Está presente em relatos tam importantes da nossa mitologia como os relacionados com a rainha Lupa no Pico Sagro, ou com o Monte Seixo. A serpe é umha figura feminina que guarda tesouros ocultos, e ofrenda-os sempre que o buscador supere as provas; o dragom verde foi emblema dos monarcas portugueses desde o século XIV, quanto menos
o leom, por seu turno, está reconhecido com símbolo de poder, bravura afouteza (quanto menos) desde o século VII. Portavam-no vários monarcas europeus, de Escócia a Aragom, e também os nossos Fernando II e Afonso VII o emperador. Representam umha naçom belicosa dirigida por elites guerreiras, como realmente acontecia antes de a Galiza entrar no seu outono baixo a pouta castelhana.

Eruditos como Tomás Rodríguez lamentam-se de um erro de interpretaçom dos textos ter deixado fora da nossa bandeira, o cálice com a hóstia consagrada, pois é o elemento que dá sentido ao conjunto: dragom e leom custodiando o graal. Pois ainda que o cálice nos traia à consciência o mais cristao dos símbolos, estamos ante a transformaçom do velho caldeiro celta: a cornucópia, a vida eterna, o esplendor perene. Assim aparece no ciclo artúrico. Até tal ponto este graal representa a Galiza, que o nosso Reino aparece representado no Armorial Segar da Inglaterra, em 1282, com o cálice de Cristo.

Permanência galega.
Como vemos, por vicissitudes da história, mesmo por acontecimentos azarosos, a nossa bandeira mais antiga renasce no século XXI sem apoio das instituiçons e de mao dadas com o movimento popular. Na recriaçom perdeu-se o graal, mas nom gostaríamos que por isso se esvaecesse o fundo significado que entranha: figuras da tradiçom galaica e europeia (leom e serpe voadora), a cornucópia céltiga (em forma de cálice) e a antiguidade cristá; expressado em termos políticos, o feito de o primeiro Estado europeu trás a queda de Roma ser o Reino da Galiza.

Umha tradiçom demasiado poderosa para elites alheias e elites autóctones desleigadas poderem apagá-la.